Em casa, o Dr. José Gonçalves é o Zé.
Ali, longe das câmaras da televisão, das reuniões do
conselho de administração, dos jornalistas, do patrão, dos empregados, dos clientes,
dos alunos, dos doentes, dos colegas… é somente o Zé.
Calça os chinelos, faz gestos prosaicos, resmunga, ri à
vontade, permite-se caprichos, cantarola na ducha.
Conhecem-lhe as manias e os gostos; sabem como
comportar-se quando está mal disposto, o que dizer para o convencer, que coisas
o entusiasmam. É lá que realmente festeja o aniversário, é lá que lhe dão o
prato preferido nos dias especiais. E sabem quais são os dias especiais. Em
casa, o tempo tem assim cantinhos aconchegados como os tem o espaço. E há ritos
velhinhos, cheios de sentido.
Em casa está tudo cheio de sentido.
Em casa pode errar. Em casa compreendem-no. Em casa ouvem
aquilo que tem para dizer com verdadeira vontade de o escutar e de sentirem
verdadeiramente as mesmas coisas que ele sente. Em casa dão tudo por um sorriso
nos lábios dele.
Em casa têm uma paciência infinita. E sabem – pela forma
como enfia a chave na fechadura, por uma certa expressão quase insensível do
rosto – que aquele dia não correu lá muito bem.
Esperam um pouco – fingindo que não repararam em nada… –
mas não tardam a contar-lhe coisas agradáveis, a pôr uma música que ele
aprecia, a recordar episódios fantásticos que viveram juntos, a trazer umas
fotografias antigas cheias de sabor, a lembrar-lhe que no Domingo há o
Porto-Sporting… Até que ele dê a devida – a pequena – importância àquilo que o
preocupava.
E, se o assunto for ainda mais sério, é certo que alguém,
lá mais para o sossego da noite, se senta a sós junto dele e lhe diz baixinho:
“conta lá…”.
O Zé termina sempre comovido os seus dias maus.
Apetece-lhe agradecer e, às vezes, chorar.
Lá fora, o Dr. José Gonçalves é valorizado de acordo com
aquilo que produz, de acordo com a sua maneira de funcionar. Pode descer ou
subir na hierarquia da empresa, pode ser despedido ou promovido, ter um
vencimento maior ou menor. Em casa, gostam do Zé assim como ele é. A família é
o único lugar onde gostam do Zé por ele ser quem é: o filho, o marido, o pai, o
irmão; aquela pessoa, com tudo o que faz parte dela, independentemente das suas
qualidades e dos seus defeitos e daquilo que possa produzir.
Na família, aquilo que os une está num plano imensamente
superior a tudo aquilo que os possa afastar. Muito acima das discórdias, das
zangas, dos amuos, dos diferentes pontos de vista. Podem as ondas enfurecidas
de um mar de inverno salpicar as estrelas? Alguém ligou aquelas vidas com um
nó, e a vida de um é a vida dos outros. E o sorriso de um é a alegria dos
outros. E a dor de um é a dor dos outros.
Mas o homem de hoje tem vindo a destruir – com uma
frequência enorme e inexplicável – a sua família…
E, ao fazer isso, suicida-se de algum modo. Aniquila a
sua personalidade, exila-se da pátria, abdica do seu reino. Transforma a sua
pessoa numa coisa, pois passará a viver apenas nos ambientes em que é
valorizado somente por aquilo que produz. Deixa de ser uma pessoa para passar a
ser um funcionário…
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