Senso Crítico

Senso Crítico

sábado, 25 de abril de 2015

Spartacus


Não há muitos dias, tive oportunidade de rever um filme dos antigos: Spartacus, dirigido por Stanley Kubrick.
Ocasião para confirmar que antigamente – tal como hoje – a corrupção se cola preferencialmente aos ricos, e que os pequenos são capazes de coisas maravilhosas ainda que lutando contra tudo e contra todos.
É apenas um filme, sem dúvida. Mas aquela revolta dos escravos – que existiu historicamente e colocou efetivamente em causa  o poderio romano – não teria sido o que foi se as coisas não se tivessem passado desse modo, mais coisa menos coisa, pelo menos nos aspectos essenciais.
Ocasião, também, para lembrar certas cenas que já não recordava exatamente e tinha fome de rever.
Uma delas sucede depois de os escravos terem perdido a batalha final. Os sobreviventes estão sentados em grupo no chão, rasgados e feridos. O comandante da Legião romana anuncia-lhes que escaparão à morte se o informarem de qual deles é Spartacus, no caso de ainda estar vivo. E Spartacus está realmente vivo, sentado entre os amigos.
O momento é de grande tensão. O realizador foca os olhos do chefe dos revoltosos e os olhos de vários dos companheiros. Está muita coisa em jogo: a vida de todos eles.
Eram amigos. Aqueles meses de contrariedades, lutas e perigos vividos em comum tinha-os unido de tal forma que era como se formassem uma só coisa. Agora os romanos queriam apenas o chefe…
Acontece por vezes que as grandes decisões se têm de tomar em muito pouco tempo. Spartacus ergue-se para revelar a sua identidade. A sua morte libertará os amigos. Mas quando vai dizer as palavras fatais, há um companheiro que se levanta mesmo ali ao lado e diz: “Eu sou Spartacus”.
É mentira, mas ele di-lo. Talvez porque de alguma forma seja verdade…
E logo outro homem se levanta, dizendo as mesmas palavras. E outro. E outro… Depressa estão todos de pé diante do oficial. Todos eles são Spartacus… e acabarão por morrer crucificados, um após outro, numa fila de cruzes que encheu quilómetros de estrada até entrar em Roma.
Existe algo de grandioso na atitude de Spartacus, que se entrega para salvar a vida dos amigos. Mas não é menos bela a reação dos companheiros. E há qualquer coisa em tudo isto que nos atrai irresistivelmente, porque o bem é atraente.
A lealdade consiste em não abandonarmos os nossos deveres e compromissos; em não abandonarmos os nossos amigos e as pessoas que confiaram em nós. É uma manifestação da grandeza da liberdade humana: leva-nos até ao fim do caminho que escolhemos, apesar de todas as dificuldades e obstáculos.
Na cor aparentemente cinza de estarmos todos os dias fielmente no nosso lugar, existe, escondido, o ouro daquilo que é sólido, firme e verdadeiro. Um homem leal é como uma rocha. Transmite segurança e espalha luz à sua volta.
Ao longo da História dos homens, como na cena do filme, a lealdade conduziu muitas pessoas a grandes sofrimentos e, até, a uma morte cruel. Mas, nos nossos dias, é uma virtude esquecida. Qualquer par de moedas, qualquer novidade aparentemente vantajosa nos faz esquecer os deveres e nos leva a quebrar os nossos laços, enchendo a nossa vida de traições a que nos vamos habituando.

Talvez devêssemos ver mais vezes filmes antigos…

segunda-feira, 20 de abril de 2015

À Maneira da Raiz


“Quando eu era pequeno… E mergulho fundo na minha infância. A infância, esse grande território de onde todos saímos! Pois donde sou eu ? Sou da minha infância. Sou da minha infância como se é de um país…”, escrevia Saint-Exupéry numa das suas obras: O Piloto de Guerra. Todos, realmente, comprovamos isto diariamente. O nosso mundo interior está povoado de imagens e recordações, muitas vezes nebulosas, que têm origem nos anos da nossa juventude. Em muitas ocasiões, temos, até, de recuar a essas épocas da nossa vida para compreendermos certas atitudes, hábitos, reações, gostos, que fazem parte da nossa maneira de existir.
Basta pensarmos em como nos sentimos tão estranhamente mergulhados em magia se, por acaso, depois de muito tempo de ausência, revisitamos lugares, ou encontramos pessoas, ou relemos livros que fizeram parte dos nossos verdes anos.
Como miúdos que éramos, brincávamos, sonhávamos, amávamos a aventura e entusiasmávamo-nos com feitos grandiosos. E, inevitavelmente, agarrávamo-nos aos heróis dos livros e dos filmes e das histórias que nos contavam. Esses heróis, juntamente com os comportamentos que porventura observámos naqueles que então nos rodeavam, ajudaram a construir a nossa personalidade. Para o bem ou para o mal. De alguma maneira, temos tendência a identificarmo-nos com os heróis (ou principais personagens, ainda que não sejam muito heroicas…) das narrativas e da vida. E fazemos de algo deles substância nossa.
Somos da nossa infância – de uma infância habitada por essas personagens – e não podemos fugir a isso. O nosso passado mais antigo persegue-nos e, em parte, explica-nos. Sucede como com a árvore, que não consegue libertar-se da sua raiz…
Como são os heróis que atualmente propomos como exemplos aos mais novos nos filmes e nos livros? São, sem dúvida nenhuma, na sua maior parte, inadequados: personagens com muito músculo ou grande beleza, ou com muita inteligência, ou muito bem equipadas materialmente. É muito pouco. Como exemplos, não servem de grande ajuda na tarefa de construir um homem, que é aquilo que se pretende com a educação.
Para enfrentar a vida, que é tão difícil, não se pode negar que qualquer uma dessas coisas dê bastante jeito; porém, facilmente se compreende que nenhuma delas é essencial. Nenhuma delas faz necessariamente, nem mesmo muito frequentemente, parte das características pessoais dos seres humanos. Nenhuma delas, além disso, é capaz de ser útil, se faltar um substrato mais profundamente humano: aquilo de que se faz um homem: os valores humanos.
Para que servem os músculos, quando chegar a hora de haver um cancro nesses músculos? Para que serve, sozinha, a inteligência, se ela, como lhe compete, nos mostrar um caminho que, por não termos coragem nem força de vontade, somos incapazes de seguir? Que é feito da beleza quando se envelhece? Sem os valores humanos, sem as virtudes humanas, andamos pela rama. Teremos, apenas, aparências de homens, projetos humanos inacabados, fracassos existenciais comprováveis na hora da verdade.
Propor aos jovens que se revejam e que se identifiquem com personagens destas é estar a enganá-los. É, além disso, escrever na água. É assim como tratar de enfeitar o que não existe: pregar um belo quadro numa parede que não tem estuque nem tijolos. Para haver uma rosa é preciso haver antes uma roseira; para haver um homem feliz é preciso haver, antes, um homem.
Precisam os jovens – e precisamos nós – de mais qualquer coisa: de exemplos de valentia, de honradez, de lealdade; precisam – precisamos – de ver noutras pessoas (também nas personagens das histórias) exemplos vivos de como podem e devem ser encarados a vida, o trabalho, o amor e a morte.
Existiram livros e filmes que cumpriam esse papel, mas agora não estamos bem servidos. Conheço pais que guardaram cuidadosamente, durante muitos anos, os livros da sua juventude e, chegada a altura, os entregam aos filhos, entretanto já suficientemente crescidos, como quem entrega um tesouro; conheço educadores que periodicamente visitam alfarrabistas em busca de um género de livros que já não podem ser encontrados noutros mercados mais acessíveis…
Quem me dera que as pessoas que têm responsabilidades neste campo entendessem melhor como são grandes, e graves, essas responsabilidades! Se a literatura juvenil e os filmes descerem o seu nível, farão, inevitavelmente, descer o nível dos homens do futuro. Publicar coisas para entreter os jovens, ou para fornecer informação, é bom. Mas não é suficientemente bom…

Está alguém comigo?

sábado, 18 de abril de 2015

Há Muitos Caminhos


Quando, há anos atrás, éramos bombardeados com a ideia de que havia no mundo uma população demasiado grande para a quantidade de alimento que era possível produzir, parecia existir uma certa lógica em que a solução evidente consistiria em reduzir a população mundial. Diziam-nos não que  era preciso encontrar as formas de produzir mais, ou de distribuir melhor o que se produzia, mas sim fazer com que aquilo que era produzido chegasse para todos, fazendo diminuindo o número desse “todos”. Os sobreviventes poderiam, desta forma, usufruir de um excelente nível de vida.
Assim se acabaria com a pobreza. Eliminando os pobres, elimina-se a pobreza. É evidente…
Depois, essa teoria não resistiu – embora ainda persista em muitos ambientes – a uma análise racional e objetiva dos fatos. E aceitam-se agora melhores caminhos que, implicando maior esforço, são mais humanos.
Quando a evolução da ciência nos permitiu conhecer melhor e manipular os processos de transmissão da vida humana, aperfeiçoaram-se as técnicas de abortar, de forma a poderem ser eliminados aqueles bebés que muito possivelmente nasceriam com alguma imperfeição.
E, quando a vida já não tiver para nós aquela qualidade que julgarmos necessária, teremos brevemente (nunca, espero eu…) formas de terminar com ela de forma doce, praticando a eutanásia…
Sonhamos com o dia em que seja possível escolher todas as características do filho que nos vai nascer: cor dos olhos e do cabelo, potência muscular, capacidade cerebral. E um caráter perfeito, todo de acordo com o nosso gosto. E sentimentos irrepreensíveis.
Somos  adeptos fervorosos da perfeição… E nem nos ralamos se, para chegarmos a ela, nos servimos de métodos… imperfeitos. Ou degradantes, ou vis, ou criminosos.
Não toleramos que a natureza, de acordo com os parâmetros que construímos na nossa mente, cometa erros ou permita anomalias.
De entre os adeptos da perfeição, Hitler foi um dos mais famosos…
E temos também um grande apreço pela justiça… Não é justo que existam pobres e ricos. Não compreendemos que possam viver, ao lado dos sãos, coxos e cegos e aleijados.
Menos ainda compreendemos que um cego possa ser feliz.
E não compreendemos que um deficiente possua a capacidade de ser feliz com a sua deficiência, porque não possuímos essa capacidade. Mas por que razão havíamos de a ter, se não precisamos dela?
Lançamo-nos com todas as forças à tarefa de eliminar da terra as injustiças e os erros da natureza.
Queremos acabar com as anomalias, com o insólito. E o insólito para nós é aquilo que não conseguimos compreender.
Mas eu já vi os cegos rirem.
Encontrei, entre os que sofrem, homens grandes. Os maiores de todos.
Vi aqueles que fizeram da sua dor os poemas que lemos na escola. E os outros, que no sofrimento do exílio compuseram as sinfonias grandiosas que ficaram para sempre.
Inclinei-me perante esses que souberam aceitar a sua pequenez diante do Deus Criador, ou da sábia natureza – conforme o olhar de cada um – e por esse caminho encontraram a maneira de alcançar a grandeza.
Conheci as mães que amaram filhos que não teriam escolhido, e que, ao amá-los, se engrandeceram e se tornaram a tal ponto ditosas que não se trocariam por ninguém. E que não trocariam o seu filho por nenhum outro.
Há muitos caminhos. Todos eles são belos e podem terminar bem.
Mas nós inventamos um modelo de vida perfeita (ou inventaram-no para nós, e martelaram-no aos nossos ouvidos até nos convencermos de que é invenção nossa?). Fora desse modelo, consideramos que tudo é anomalia e erro.
Se continuarmos assim – Saint-Exupéry disse algo semelhante em A Cidadela – havemos de querer suprimir as pérolas, porque não passam de uma anomalia resultante de um erro das ostras. Mandaremos enforcar as mulheres mais simultaneamente belas e virtuosas, por não serem vulgares. Apagaremos dos livros os nomes dos homens que escreveram belas sinfonias e geniais poemas, porque eles não foram iguais aos outros homens.
Permitam-me que diga que não concordo.
Eu tenho grande estima pelo “erro”, porque, além de permitir o génio, introduz a variedade.  Para eu poder apreciar uma árvore alta, tenho de aceitar a existência das árvores baixas. Ou ao contrário, se por acaso eu quiser nesse dia apreciar as árvores baixas.
Além do mais, eu amo o deserto, que não é senão um erro da floresta. E amo o oásis, que não passa, por sua vez, de um erro do deserto.
Estimo o erro também porque ele, ao autorizar a sombra, permite a luz.
O que são, numa árvore, os frutos bons? Se eu não conhecesse os frutos falhados, como é que havia de saber que os outros eram bons?
E como havia eu de saborear as alegrias do reencontro, se não houvesse a ausência?
Que sabor teria para mim a água fresca, se não tivesse tido sede?
Permitam-me que afirme que tudo é bom e belo. E que utilize a minha voz para dizer que se deve deixar ser aquilo que é.

Será preciso ter coragem, em alguns casos? Pois sejamos corajosos, que isso não é nada de especial num homem.