Senso Crítico

Senso Crítico

domingo, 28 de dezembro de 2014

Mar de Sargaço


Tudo o que faço ou medito
Fica sempre na metade.
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.
(Fernando Pessoa)

Não consigo, tantas vezes, levantar-me da cama à hora marcada. Não tenho sido capaz de me deitar na altura devida. Sei que devia sorrir em certas ocasiões, mas não o faço. Talvez porque não tenha dormido o suficiente.
Deixei de ajudar na cozinha, aproveitando já não sei que situação extraordinária lá em casa, e depois disso deixei passar o tempo sem retomar esse serviço. Passam-se dias e dias antes de que me convença a executar o gesto de engraxar os sapatos. Qualquer dia vou à escola falar com os Diretores de Turma dos meus filhos…
Já disse a mim mesmo inúmeras vezes que não tornaria a perder um minuto da minha vida sentado sem um objetivo à frente da televisão. Prometi que estaria disponível para as crianças no pouco tempo que passamos juntos, mas o jornal…
Irrito-me com quem faz alguma coisa mal feita, mas nem sempre acabo com perfeição a tarefa que tenho entre as mãos. Os papéis continuam desarrumados na minha secretária. Guardo em mim pequenos rancores. Há dias voltei a esquecer-me do aniversário do meu irmão.
Fiz algumas aldrabices, talvez suficientemente pequenas para que não se possam chamar mentiras, mas suficientemente reais para que a minha consciência não me ache muito honesto.
Mas, tirando tudo isto, trago em mim todos os sonhos grandes e nobres. Sei exatamente qual é o remédio para a situação do mundo. Gostava de gastar a minha vida para o tornar melhor. Dou ótimos conselhos.
E sofro, mesmo a sério, com os que passam fome. Quereria ir até junto deles e ajudar. Dá-me vontade, às vezes, de pegar em armas e ir batalhar ao lado de homens a quem tiraram as casas e vivem na selva e dormem enrolados em cobertores em noites de geada e lutam contra canhões com espingardas desatualizadas. Ou de ser escudo humano. Ou de me tornar poderoso e fazer a justiça toda que faz falta a este mundo.
Gostaria de abraçar todos os que sofrem. Quereria estar presente no local dos terremotos logo nos instantes seguintes e ajudar a retirar dos escombros gente viva. Sou tolinho – ou lúcido? – como a criança a quem perguntam, pelo Natal, que presentes deseja para o mundo.
Muitas vezes me pergunto de que tamanho sou. Não sei se sou este, ou se sou o outro, o da preguiça e da vida morna.
O poema do início continua assim: Que nojo de mim me fica / Ao olhar para o que faço! / Minha alma é lúcida e rica, / E eu sou um mar de sargaço.
Um mar de sargaço.
Quando reparo no que faço, sinto-me longe de mim. E tenho pena. Se existe dentro de um homem um desejo elevado e nobre, é porque o homem deve vir a ser do tamanho desse desejo. Será uma tarefa para a vida toda, mas compreendi que corro o risco de nunca passar de um sentimental meio vazio – e de falhar a vida – se deixar a minha nobreza apenas no plano da imaginação; se fugir daquilo que é concreto e óbvio: o relógio, a ordem, o pequeno sorriso, as pessoas ao lado, a verdade inteira…
Está mais construído do que eu aquele que nunca sonhou coisas longe, mas sabe ser grande no pequeno dever de todos os dias, naquilo que está ao alcance da mão.

E vim a descobrir que é belo um homem estar com plenitude no seu lugar, como a peça de relógio que realiza bem a sua função e permite assim que o conjunto funcione. Que essa é, sem dúvida, uma forma de ir longe e colaborar e construir o mundo.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Embrulho sem Presente


O Natal já existia quando eu vim.
No princípio era haver mais bolos lá em casa, como nas festas de aniversário, e também presentes. E era muito bom verificar que cabiam na mesma casa, conosco, os avós, os tios e os primos. Havia um calor qualquer que faltava no resto do ano. Um aconchego a que não sabia dar nome.
Depois, juntou-se a tudo isto o fato de o Natal acontecer dentro dessa outra coisa maravilhosa que eram as férias. E ganhou ainda mais encanto.
Mas chegou a idade de querer saber a razão funda das coisas. Saí para a rua, onde as pessoas compravam e vendiam presentes envolvidos em papéis de muitas cores. Mas os que compravam e vendiam não souberam dizer-me o que desejava. Falaram-me de como tinham de correr muito nessa época do ano; falaram-me de números e das poupanças que tinham feito; do seu esforço e de como a vida não estava boa para dar prendas.
Nada sabiam acerca do Natal. Deixei-as nas suas absurdas correrias e continuei a procurar. Nas ruas, as luzes não passavam de técnica comercial e, no fundo, tudo estava muito escuro.
E fui ver as famílias, lembrando-me de como, em pequeno, o Natal me rodeava quando estava com os meus. E vi como as famílias continuavam a se juntar. E como continuavam a caber muitos numa casa pequenina. Mas ficavam sentados, passando o tempo em frente da televisão. Havia monossílabos e gritos. E compreendi que era apenas por hábito que se reuniam. Pareceu-me que tinham perdido o Natal, conservando somente a roupagem do Natal. Era como se houvesse o embrulho bonito do presente, mas sem presente dentro.
Achei as famílias disparatadas e saí de novo.
Foi só quando já não sabia onde procurar que tive a minha resposta. Os meus passos vagabundos levaram-me até onde se tinham juntado aqueles que sabiam de dores. Não recordo já se era hospital ou prisão. Ou uma barraca de janelas abertas ao frio da noite. Uma mãe tinha perdido um filho. Outra tinha um filho doente. Um homem jazia imóvel num leito e gemia não sei que doença. Outro tinha um sonho grande e umas mãos pequenas, e sofria de não ser capaz. Havia cegos e alguns que, vendo, desejavam ver de outro modo.
Não sei contar todos os casos, mas posso dizer que vi uma oração nos lábios de cada um deles; nos olhos de cada um, uma lágrima e, simultaneamente, um brilho de esperança. Os que podiam tinham-se ajoelhado – era quase meia-noite – à beira de uns bonecos de presépio, entre os quais estava o daquela que havia de ser mãe.
Uma mãe ainda sem o filho nos braços… mas era quase meia-noite!
E compreendi: o Natal é só de quem há muito espera. De quem ainda não se encheu. É só de quem sonhou além das coisas e se vê ainda muito longe. É de quem tem chorado. De quem olha para dentro de si mesmo e sente medo. De quem não encontrou ainda o seu consolo.
O Natal existe apenas onde existe a falta. Nós, que temos tudo – que pensamos que temos tudo – sofremos da terrível pobreza de não sabermos sequer que somos pobres.

O Natal não é para nós. Ainda não somos capazes de o entender…

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

O Processo


O processo é sempre o mesmo e resume-se nisto: quem não consegue viver de acordo com a sua forma de pensar corre o risco de que o seu pensamento dê uma volta e se adapte  à sua nova forma de viver…
Primeiro, descobrimos que se torna muito difícil moldar a nossa vida por aqueles princípios que a nossa consciência nos indica como sendo bons. É tudo muito complicado. Exige demasiados esforços. Não parece uma forma de viver talhada à nossa pequena medida.
Depois, ao desistirmos de viver desse modo – e porque a consciência não se cala – não encontramos paz dentro de nós, surgindo como solução a triste possibilidade de tentarmos enganar a consciência.
(Dizem que os tormentos interiores são a pior das torturas, e que as pessoas tudo fazem para se libertarem deles…).
Começamos então a procurar – para os apresentar a nós mesmos – argumentos que sugiram estar errada a nossa forma inicial de pensar: que tínhamos sido ingênuos; que déramos demasiada importância aos contos de quando éramos pequenos e às tolas superstições dos nossos pais ou dos nossos avós; que as coisas mudaram e os tempos são outros.
Nesta altura, basta um pequeno passo para passarmos a admitir que, durante séculos e séculos, o mundo inteiro esteve enganado, procurando o bem e a felicidade nos locais errados. Felizmente – pensamos – o progresso veio dissipar essas trevas medievais… e trazer-nos uma nova moral, mais ao nosso jeito: um bem e um mal que se adaptem aos  nossos interesses, que variem consoante as necessidades.
No entanto, deparamos nesta fase com um sério problema: a coisa não resulta! A consciência diz-nos que não pode julgar segundo uma lei que fomos nós mesmos a inventar. Diz-nos claramente que a lei a seguir deve estar fora de nós e bem alto.
E é neste momento que sucede, por vezes, lançarmo-nos, como último recurso, às leis dos países. Se essas leis passassem a autorizar aquilo que fizemos – ou que fazemos e não queremos deixar de fazer – encontraríamos talvez sossego…
Não é outra a causa das constantes aberrações que vemos tomarem a forma de lei nos mais diversos países. Procuramos disfarçar com roupagens de legalidade aquilo que de mais sujo existe dentro de nós, os nossos fracassos, os interesses inconfessáveis, a nossa pouca vontade de fazer mais e melhor.
Vemos, por exemplo, como aqueles que abortaram estão entre os principais activistas pró-aborto, lado a lado com os que ganham dinheiro com ele.
E cada um de nós já está, decerto, a lembrar-se de outros exemplos. Também dentro de si mesmo.
Mas sucede que o processo não resulta mesmo! A consciência, ao cumprir o seu papel de juiz, não se deixa enganar como uma criança. E isso nota-se muito bem na continuação da ausência de alegria e de paz.

O caminho é outro, embora seja escarpado e agreste.

domingo, 7 de dezembro de 2014

O mundo põs-moderno na visão de Zygmunt Bauman


Um viciado do Facebook gabou-se para mim de que havia feito 500 amigos em um dia. Minha resposta foi que eu vivi por 86 anos, mas não tenho 500 amigos. Eu não consegui isso. Então, provavelmente, quando ele diz "amigo", e eu digo "amigo", não queremos dizer a mesma coisa. São coisas diferentes.
Quando eu era jovem, nunca tive o conceito de "redes". Eu tinha o conceito de laços humanos, de comunidades, esse tipo de coisa, mas não redes. Qual é a diferença entre comunidade e rede? A comunidade precede você. Você nasce numa comunidade. Por outro lado, temos a rede. O que é uma rede? Ao contrário da comunidade, a rede é feita e mantida viva por duas atividades diferentes. Uma é conectar e a outra é desconectar.
E eu acho que a atratividade do novo tipo de amizade, o tipo de amizade do Facebook, como eu a chamo, está exatamente aí. Que é tão fácil de desconectar. É fácil conectar, fazer amigos. Mas o maior atrativo é a facilidade de se desconectar. Imagine que o que você tem não são amigos online, conexões online, compartilhamento online, mas conexões off-line, conexões de verdade, face a face, corpo a corpo, olho no olho.
Então, romper relações é sempre um evento muito traumático. Você tem que encontrar desculpas, você tem que explicar, você tem que mentir com frequência e, mesmo assim, você não se sente seguro porque seu parceiro diz que você não tem direitos, que você é um porco, etc. É difícil, mas na internet é tão fácil, você só pressiona delete e pronto.
Em vez de 500 amigos, você terá 499, mas isso será apenas temporário, porque amanhã você terá outros 500... E isso mina os laços humanos.
Os laços humanos são uma mistura de benção e maldição. Benção, porque é realmente muito prazeroso, muito satisfatório, ter outro parceiro em quem confiar e fazer algo por ele ou ela. É um tipo de experiência indisponível para a amizade no Facebook; então, é uma benção. E eu acho que muitos jovens não tem nem mesmo consciência do que eles realmente perderam, porque eles nunca vivenciaram esse tipo de situação.
Por outro lado, há a maldição, pois quando você entra no laço, você espera ficar lá para sempre. Você jura, você faz um juramento: até que a morte nos separe, para sempre. O que isso significa? Significa que você empenha o seu futuro. Talvez amanhã, ou no mês que vem, haja novas oportunidades. Agora, você não consegue prevê-las. E você não será capaz de pegar essas oportunidades, porque você ficará preso aos seus antigos compromissos, às suas antigas obrigações.

Então, é uma situação muito ambivalente. E, consequentemente, um fenômeno curioso dessa pessoa solitária numa multidão de solitários. Estamos todos numa solidão e numa multidão ao mesmo tempo.

sábado, 6 de dezembro de 2014

Se Rissemos


Damos demasiada importância a nós mesmos. Levamo-nos demasiado a sério e daí resulta uma série de coisas desagradáveis para nós e para os que convivem conosco.
É frequente que uma frase ou um gesto de outra pessoa ganhe a nossos olhos o tom de uma ofensa. Somos doentiamente sensíveis neste ponto. Se alguém cruzar conosco e não nos cumprimentar, ou se não nos cumprimentar com um certo tom de voz, ou se não utilizar o sorriso que esperávamos, logo entendemos que não nos estão a considerar como deviam. Se discordarem de nós numa qualquer pequena coisa, colocamos imediatamente essa atitude num plano de ofensa pessoal. Se não for possível darem-nos aquilo que desejávamos, ou com a plenitude que desejávamos, isso significa que não gostam de nós ou, até, que nos têm um ódio incompreensível. E se se esquecerem de uma coisa que tínhamos pedido… Ou se o nosso aniversário não tiver desta vez uns festejos tão brilhantes… Ou se nos fizerem uma crítica, mesmo com boa intenção… Ou se não derem total atenção às nossas palavras…
Ficamos com essas “ofensas” cá dentro, na forma de rancores, ressentimentos. Ou então – se compreendermos que guardar rancores é como tomar veneno e esperar que assim a outra pessoa morra… – soltamo-los, à primeira oportunidade, de mil maneiras diferentes, como quem dispara facas afiadas.
Há talvez problemas na nossa vida que resultaram disto. Tem havido guerras, de várias dimensões, com esta origem. Tem havido famílias destruídas por causa disto.
Por que é que achamos que temos direito a tanta consideração? Por que é que aquilo que consideramos os nossos direitos é, a nossos olhos, tão importante?
Não somos o centro do mundo. Os outros, quando lidam conosco, não têm nenhuma razão para terem uma impecabilidade e uma absoluta concentração nos mais pequenos pormenores. É bastante razoável que estejam a pensar noutra coisa. Que tenham os seus próprios problemas. Que estejam nesse dia com dor de cabeça, ou que tenham um filho doente. É natural que lidem conosco como com alguém igual a eles, e não como com Deus.
Somos, cada um de nós, um bicho da terra bem pequeno. Um grão de areia. Menos que um grão de areia, em duração, porque nós vamos e os grãos de areia ficam.
Somos apenas um de biliões de habitantes temporários deste pequeno planeta, que dá voltas curtas em redor de uma insignificante estrela que não passa de uma no imenso número das estrelas.
Quando nos sentamos a ver passar um rio, a verdade é que é o rio que está a ver-nos passar. Porque, depois de nós, o rio estará ali.
Já nos disseram – mas não compreendemos – que nos tornamos grandes e importantes e eternos quando nos damos aos outros sem esperar nada deles. Sem desejar compensações. É talvez este o único direito que devíamos estimar: o direito de não querer direitos.
É possível que uma maneira de nos libertarmos deste egocentrismo (eu no centro), que nos afasta da felicidade e da grandeza, seja o bom humor.
Devíamos rir até à gargalhada quando dentro de nós – dentro do pequeno grão de areia – se ergue o rei ofendido, o nobre desconsiderado, o deus incompreendido reclamando os seus direitos. Devíamos rir porque… é ridículo. Devíamos rir como quando vemos, no Carnaval, a criança colocar um bigode postiço sobre os lábios. Ou como quando vemos alguém levar de passeio pela rua um cão que foi embrulhado num chapéu, numa camisolinha e nuns sapatinhos…

Se ríssemos, talvez desabasse esse palácio artificial, falso, sob o qual temos vindo a abrigar-nos.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Vinhas de Longe



Toda a aldeia se debruçou sobre ti quando chegaste.
Vinhas de longe e amarraste o teu cavalo à oliveira,
Mas ainda não sabíamos que trazias um sol por dentro.
Detidamente te olhamos depois: vimos como sorrias ou calavas.
Destes passos entre nós e é certo que foste um dos nossos:
Talvez termine aqui o teu caminho…
Fica: se o nosso olhar puder deter-se em ti
Teremos a alegria sempre conosco.
Cantaremos guardando o rebanho e cuidando dos nossos campos.
Fica: podes passear entre as searas
E conversar à noite com os nossos velhos.
Contarás histórias aos pequenos e nós aprenderemos sorrindo.
Havemos de chorar, se tu partires… Não à tua frente,
Mas as nossas ovelhas e os olivais da colina
E o velho moinho saberão que estamos tristes.
É certo que te trazemos conosco enquanto trabalhamos
Ainda que estejas lá em baixo, junto ao poço,
Mas temos medo do tempo e desconfiamos de nós.
É que o nosso dia está cheio de regressos a casa
E a mulher vem espreitar e os filhos enrodilham-se no arado:
Nunca tivemos uma luz que o tempo não voltasse a trazer depressa.

Fica: talvez não saibamos ler-te na ausência:
Sabemos onde é o poço,
Mas o mundo pode ser para nós longe demais…

domingo, 30 de novembro de 2014

Irmãos Pequenos do Vento


Eu e os outros fomos protagonistas de um milagre. Ninguém ainda conseguiu explicar como estamos vivos neste momento… Ninguém encontra uma razão para o fato de termos ultrapassado as fases da infância e da adolescência.
Fazíamos coisas disparatadas sem que alguém nos protegesse. Saíamos em grupo para tomar banho no velho açude, mesmo sem antes termos aprendido a nadar corretamente. Partíamos de bicicleta, sem capacete, para tão longe quanto aguentassem as forças ou a fome. Íamos sem destino. Entrávamos em cavernas e perdíamo-nos lá dentro. Trepavamos muros altos para entrarmos em casas abandonadas, onde estabelecíamos o nosso refúgio. Fazíamos explorações, rasgávamo-nos, sujávamo-nos.
Íamos a pé para a escola, mesmo quando estava a chover, mesmo quando ficava longe.
E lutávamos uns com os outros. Esmurrávamo-nos. Partíamos, por vezes, ossos e dentes. Organizávamos, na mata do castelo, grandes combates, nos quais utilizávamos espadas de madeira que tínhamos construído. Sabíamos bem – por experiência própria, e não apenas porque nos tivessem dito – que uma ferida profunda doía e demorava algum tempo a cicatrizar. Viver, para nós, não podia ser sem correr riscos. Ou éramos de todo inconscientes ou pensávamos que um anjo cuidava de nós.
Não havia um animador que viesse ensinar-nos modos corretos de brincar. Nem organizações que fabricassem para nós formas de ocupação dos tempos livres. Não tínhamos tempos livres. Não sei, aliás,  como pudemos sobreviver a tanta atividade.
Não parávamos. Tínhamos apetite: comíamos como cavalos e não ficávamos obesos. O Sol alojava-se em nós e fazia-se cor e saúde.
Inventávamos as nossas brincadeiras e nunca precisamos comprar jogos caros. Usávamos paus, pedras, velhos pneus, uma corda… Não tivemos jogos electrónicos, 99 canais a cabo, filmes em vídeo, celulares, computadores ou Internet.
Tivemos  amigos.
Passávamos horas e horas a brincar lá fora com eles. Como não havia os telemóveis (celulares), muitas vezes ninguém sabia exatamente onde estávamos. Resolvíamos os nossos problemas. Lidávamos sozinhos com um pneu furado na bicicleta, com um dia de tempestade, com um objeto perdido. Descobríamos a maneira de arranjar uma bola de futebol, de apanhar um grilo, de fazer uma fogueira. Aprendíamos a lidar com cada um dos nossos companheiros, com as nossas capacidades, com as circunstâncias mais variadas.
Crescíamos.
Nem em casa sossegávamos muito, porque tínhamos irmãos.
Os nossos pais ainda não conheciam as novas regras sobre o trabalho infantil. Mas também conseguimos sobreviver ao fato de termos de fazer a cama, cozinhar algumas das nossas refeições, ajudar a pintar a casa, preparar a roupa para vestir no dia seguinte, varrer a sala, lavar a louça.
Fazíamos loucuras. Brincávamos com cães não vacinados, bebíamos todos pela mesma garrafa, secávamos a roupa no corpo. Dávamo-nos com gente pouco recomendável. Pedíamos boleias. Entrávamos em acampamentos de ciganos e tínhamos lá amigos. Aprendíamos coisas com eles.
Mil vezes podíamos ter morrido, mil vezes podíamos ter sido assaltados, mil vezes podíamos ter adoecido gravemente. Mas sempre que superávamos uma dificuldade tornávamo-nos mais fortes, mais capazes de enfrentar o que viesse. Servíamo-nos dos nossos adversários para crescer. A dor tornava-nos resistentes à dor; a necessidade de nos esforçarmos aumentava a nossa força; uma derrota levava a que nos conhecêssemos melhor.

Sobrevivemos. Éramos os irmãos pequenos do vento. Gostávamos de sentir a chuva a escorrer do cabelo para a face.

O Jogo das Pedrinhas


Havia pouca gente no estabelecimento quando entrei. Enquanto tomava o meu café pude assistir com sossego ao acontecimento, cuja importância fui compreendendo. Era o jogo das pedrinhas. A menina tinha talvez três anos e estava sentada sobre o balcão. Um senhor, que parecia ser o pai, estava diante dela e tinha de adivinhar em qual das mãos tinha a menina colocado uma pedra pequenina. Ela, com os braços atrás das costas, sem que o pai pudesse ver, deixara a pedra numa das mãos, e agora estendia-as ambas, fechadas, para que o pai adivinhasse.
O pai escolheu uma das mãos, mas não acertou. Foi isso o que a criança lhe disse, começando imediatamente a preparar-se para repetir o jogo. Mas o pai pediu-lhe que abrisse as duas mãos com as palmas para cima. Era preciso que ela apresentasse a prova de que o pai não tinha acertado…
O senhor partiu do princípio de que a filha podia estar a mentir. Não estava… mas abriu as mãos.
Enquanto tomava o meu café assisti ao instante exato em que aquela menina aprendeu que não era merecedora de confiança, que não acreditavam nela, que a sua palavra não tinha valor. Que esperavam dela que fosse capaz de enganar os outros para alcançar os seus objetivos.
Aos três anos. Num jogo. Com o pai.
Muito se poderia dizer acerca das mentiras das crianças ao longo do seu desenvolvimento – muitas vezes relacionadas com a aprendizagem de o que é a realidade e o que é a imaginação. Mas este caso não tem relação com isso.
Enquanto tomava o meu café pareceu-me estar a assistir a um exemplo concreto de como se colocam minas nos alicerces do mundo. “Estamos todos num mesmo barco, em mar tempestuoso, e devemos uns aos outros uma terrível lealdade”, escreveu Chesterton. Essa lealdade é necessária nos fundamentos da convivência entre os homens.
E lembrei-me de como os antigos tinham tão elevada estima pela sua honra que a defendiam com unhas e dentes, de como consideravam uma desgraça a sua perda.
A honra de uma pessoa é o reconhecimento de que essa pessoa é íntegra e digna de confiança. Não como consequência de uma campanha artificial, como agora se consegue através da publicidade e da propaganda, mas como resultado de um longo e constante esforço por ter um comportamento correto.
O mundo é uma selva, e isso conduziu-nos à desconfiança. Desconfiamos por princípio, por hábito, por medo, por insegurança, por prudência. Desconfiamos sempre. Se alguma vez confiamos, passamos muito possivelmente pela amargura de sermos enganados. Desconfiamos porque a nossa experiência de vida nos levou a desconfiar. Aprendemos com os nossos erros e fazemos muito bem.
Fazemos muito bem… desde que não queiramos fazer nada para mudar o mundo, desde que estejamos contentes com a selva que nos rodeia, desde que não nos importemos com ferir as pessoas que estão ao nosso lado. Porque é preciso que tomemos consciência de que ofendemos uma pessoa quando partimos do princípio de que ela não é digna de confiança. E de que essa ofensa é sentida muito mais vivamente se essa pessoa for jovem. Não há melhor forma de fazer de uma criança um mentiroso do que desconfiar dela. E confiar nela é necessário para que venha a ser um adulto verdadeiro.
Nas crianças devemos confiar sempre. Ao lidar com elas estamos a construir o mundo. Devem crescer com a noção de que se espera delas a verdade, a nobreza, a dignidade. Devem saber que é isso o normal, embora exija esforço.
Querem ser boas, querem aprender, querem ser gente a sério. São o que de melhor há no mundo. Têm os olhos limpos, o coração limpo e as mãos limpas. Acreditemos nelas. Se alguma vez nos enganarem, não há o risco de que entendam esse comportamento como normal, porque se hão de lembrar de que confiamos nelas. Não pensarão: “toda a gente faz isto”. Sentir-se-ão mal. Terão pena. Voltarão à verdade.

Mesmo que tenhamos sérias dúvidas, será melhor deixarmo-nos enganar do que lançar sobre elas a suspeição, que magoa e marca e arruína. Pode perder-se qualquer coisa, mas é muito mais – e está noutro plano – aquilo que se ganha.

O Lago


Não deves recusar o esforço, porque ele é um caminho.
Num lugar que terás de descobrir – que fica sempre alto e longe – existe para ti uma lagoa meio escavada na rocha, com relva muito verde em parte das margens e cantos alegres de pássaros calmos.
Encontram-se lá os que amas, fortes e generosos. Sorridentes.
Há sol e também a sombra de altas árvores. Por cima, apenas o céu, à distância de um último salto.
Não é um destino inevitável, mas um lugar onde és esperado e que podes, ou não, alcançar, conforme a medida do teu desejo. Só quando lá chegares terás alcançado toda a tua envergadura. Só lá te encontrarás contigo mesmo.
Existes para chegar  a esse lago. Os teus olhos são capazes de pousar nas suas águas limpas, que refletem já o céu que lhes há por cima.
Não se pode querer mal aos caminhos que conduzem a lugares assim, embora sejam escarpados e se torne impossível evitar ferimentos e cansaços quando se segue por eles.
Se o teu desejo de chegar for grande, nenhum esforço te parecerá demasiado penoso. E, embora vás a caminho, terás sempre contigo qualquer coisa que é já de ter chegado. Talvez uma certa forma de olhar, resultante daquela luz que se acende por dentro quando nos pomos a caminho dispostos a tudo o que aparecer.
E nem haverá problema se a morte te encontrar assim, ainda no gesto de subir: já tens em ti o teu lago, na imagem dele que te fez partir.
Não deves recusar a dor, porque ela te constrói, te marca os limites e te faz crescer por dentro dos teus muros.
Sem ela, não passarias de um projeto do homem que hás de ser. Ela edifica-te os músculos, a cabeça e o coração, e não existe outra maneira de chegares a ser aquilo que deves vir a ser.
Se não sofresses não haveria ninguém dentro de ti.
No cumprimento sério dos teus deveres, encontrarás a dor na forma de esforço e de cansaço.
Mas pode muito bem ser que, tarde ou cedo, ela te procure sem disfarces e te faça chorar ou gemer. É frequente que ela se apresente assim, numa nudez que parece cruel e faz lembrar facas ou agulhas.
Nem por isso te deves assustar ou desistir.
Quando te parecer que tudo está perdido, ri-te, se puderes. É que te estão a oferecer um degrau que te deixará incomparavelmente mais acima no caminho. Deves ver nisso o sinal de que – por qualquer razão – é tempo de andares depressa.
Sobretudo, não te queixes. Há assim metamorfoses que parecem aniquilar, mas não passam de formas de fazer surgir a borboleta.
Não te queixes, porque receberás umas asas e cores novas.

O teu lago – de onde de tão perto se pode olhar o céu – tem um preço que tu saberás dar e não é tão grande assim.

sábado, 1 de novembro de 2014

Virgo


Não quero usar-te. Não tenciono ganhar experiência à tua custa. Não quero que sejas um episódio na minha vida, nem desejo estar de passagem pela tua.
Não penso que a vida seja uma brincadeira, embora se possa brincar com quase tudo. Sou ainda novo e tenho muito que descobrir, mas aprendi a amar aquilo que é sólido e permanece. Sou demasiado ambicioso para querer menos que o máximo, e não trocarei o meu sonho por ilusões, ainda que sejam doces e agradáveis.
Estabeleci para a minha vida ter filhos e fazer da educação deles, da tarefa de fazer deles homens, o grande sentido do tempo que me for dado para estar aqui. Outros terão objetivos diferentes, mas foi com isto que sonhei. Quero edificar uma casa sólida que dure séculos. Nela crescerão os meus filhos e os filhos dos meus filhos… até vir a ser, com o tempo, uma bela cidade. No meu sonho, vi a miudagem correndo à beira de um ribeiro, com os olhos limpos, traquinas e alegres.
Por isso, embora sinta isto que sabes que sinto, embora sintas aquilo que sei que sentes, talvez se torne necessário dizer-te, e dizer-me, que pode não chegar o dia em que troquemos palavras de amor.
Mas esta carta pode também ser o alicerce do belo edifício que construiremos juntos e há de permanecer para sempre.
Tens ainda tempo para vires a ser como te sonhei; tenho ainda tempo para me tornar merecedor de te ter como te sonhei.
Torna-te toda mistério e luz.
Luz porque quero ver-te inteira – sem névoas nem disfarces nem complicações – quando te olhar nos olhos; mistério porque quero que cresças por dentro, em silêncio, e te enchas, em segredo, daquelas riquezas que só se devem manifestar quando nos entregamos a alguém para sempre.
Enfeita-te interiormente, sobretudo. Como a flor para a qual não chegou ainda a Primavera e vai preparando recatadamente as suas cores e os seus aromas.
Demora-te no teu tempo e não permitas a pressa. E ajuda-me a não ter pressa.
Veste vestidos compridos, se puderes, e não saias curtas ou calças apertadas. Sempre me pareceu que certas formas de vestir não são senão a manifestação de um vazio interior muito grande. Algumas que vejo passar na rua fazem-me lembrar montras de talhos…
Aquela que vai para a rua mostrar as formas do seu corpo atrai os homens que procuram na mulher um corpo, e assim se torna semelhante à prostituta. E assim se desgraça e os desgraça. Assim passa de mulher a corpo de mulher, tornando-se infinitamente menor do que devia ser.
Mas eu quero que sejas do tamanho de seres mulher. Quero que sejas forte.
Porque, embora possa não parecer, sei que sou frágil. E aquela que há de ser a mãe dos meus filhos fará a meu lado toda a aventura da vida, e será a minha força e os muros da minha cidade e o ombro para o meu cansaço.
“Virgo” era a palavra que, no meu sonho, encontrei inscrita numa pedra de umas ruínas que bem podiam ser as ruínas do mundo. Por ela me apaixonei.

Vim mais tarde a saber que significa “virgem” e já não era muito usada. Disseram-me que tem, em latim, a mesma raiz da palavra “força”.

É


É!
A gente quer valer o nosso amor
A gente quer valer nosso suor
A gente quer valer o nosso humor
A gente quer do bom e do melhor...
A gente quer carinho e atenção
A gente quer calor no coração
A gente quer suar, mas de prazer
A gente quer é ter muita saúde
A gente quer viver a liberdade
A gente quer viver felicidade...
É!
A gente não tem cara de panaca
A gente não tem jeito de babaca
A gente não está
Com a bunda exposta na janela
Prá passar a mão nela...

É!
A gente quer viver pleno direito
A gente quer viver todo respeito
A gente quer viver uma nação
A gente quer é ser um cidadão
A gente quer viver uma nação...

Letra Gonzaguinha
Imagem Portinari

Sentado à Beira do Caminho


Eu não posso mais ficar aqui
A esperar!
Que um dia de repente
Você volte para mim...
Vejo caminhões
E carros apressados
A passar por mim
Estou sentado à beira
De um caminho
Que não tem mais fim...
Meu olhar se perde na poeira
Dessa estrada triste
Onde a tristeza
E a saudade de você
Ainda existe...
Esse sol que queima
No meu rosto
Um resto de esperança
De ao menos ver de perto
O seu olhar
Que eu trago na lembrança...
Preciso acabar logo com isso
Preciso lembrar que eu existo
Que eu existo, que eu existo...
Vem a chuva, molha o meu rosto
E então eu choro tanto
Minhas lágrimas
E os pingos dessa chuva
Se confundem com o meu pranto...
Olho prá mim mesmo e procuro
E não encontro nada
Sou um pobre resto de esperança
À beira de uma estrada...
Preciso acabar logo com isso
Preciso lembrar que eu existo
Que eu existo, que eu existo...
Carros, caminhões, poeira
Estrada, tudo, tudo, tudo
Se confunde em minha mente
Minha sombra me acompanha
E vê que eu
Estou morrendo lentamente...
Só você não vê que eu
Não posso mais
Ficar aqui sozinho
Esperando a vida inteira
Por você
Sentado à beira do caminho...

Preciso acabar logo com isso
Preciso lembrar que eu existo
Que eu existo, que eu existo...


Inspirada em uma canção sucesso no ano de 1968, Honey (I miss you) de Bobby Russell, interpretada por Bobby Goldsboro, foi composta, em trabalho conjunto, letra e música, pela dupla de compositores Roberto Carlos e Erasmo Carlos.
É uma canção romântica descrevendo o desespero e a desesperança de um apaixonado que se encontra na "beira de uma estrada" aguardando por sua amada. Nesta situação, a letra descreve o que se passa na estrada (movimento, chuva, sol, trânsito) enquanto o personagem espera por sua grande paixão.
O refrão "Preciso acabar logo com isto, preciso lembrar que eu existo", segundo uma entrevista de Erasmo Carlos, foi criação de Roberto Carlos, após uma madrugada inteira atrás das "palavras certas", e que surgiu após um breve cochilo.
O arranjo da primeira versão da música é valorizada pelo teclado Hammond B-3 de Lafayette, bastante original e criativo e também pela guitarra base de Aristeu Alves dos Reis.
Na época, a gravação de Erasmo Carlos foi um estrondoso sucesso, tornando a colocar o cantor nas paradas de sucessos nacionais. As rádios não paravam de tocar a canção em todo o Brasil.
A novela Beto Rockfeller chegou a executá-la na íntegra em um capítulo, enquanto o personagem principal caminhava pelas ruas de São Paulo.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

João e Maria


Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era você além das outras três
Eu enfrentava os batalhões
Os alemães e seus canhões
Guardava o meu bodoque
E ensaiava o rock para as matinês
Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigado a ser feliz
E você era a princesa que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país
Não, não fuja não
Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu pião
O seu bicho preferido
Vem, me dê a mão
A gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido

Agora era fatal
Que o faz-de-conta terminasse assim
Pra lá deste quintal
Era uma noite que não tem mais fim
Pois você sumiu no mundo sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim?

Somos Todos Iguais Nesta Noite


Somos todos iguais nesta noite
Na frieza de um riso pintado
Na certeza de um sonho acabado
É o circo de novo...
Nós vivemos debaixo do pano
Entre espadas e rodas de fogo
Entre luzes e a dança das cores
Onde estão os atores..
Pede a banda
Prá tocar um dobrado
Olha nós outra vez no picadeiro
Pede a banda
Prá tocar um dobrado
Vamos dançar mais uma vez...
Somos todos iguais nesta noite
Pelo ensaio diário de um drama
Pelo medo da chuva e da lama
É o circo de novo...

Nós vivemos debaixo do pano
Pelo truque malfeito dos magos
Pelo chicote dos domadores
E o rufar dos tambores...

Arte de Konstantin Somov

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Outra Vez



Outra Vez é uma canção gravada por Roberto Carlos no ano de 1977, e é considerada um de seus clássicos. Por essas e por outras vale recordar essa canção outra vez

Você foi o maior dos meus casos
De todos os abraços o que eu nunca esqueci
Você foi dos amores que eu tive
O mais complicado e o mais simples pra mim
Você foi o melhor dos meus erros
A mais estranha história que alguém já escreveu
E é por essas e outras
Que a minha saudade faz lembrar de tudo outra vez
Você foi a mentira sincera
Brincadeira mais séria que me aconteceu
Você foi o caso mais antigo
O amor mais amigo que me apareceu
Das lembranças que eu trago na vida
Você é a saudade que eu gosto de ter
Só assim sinto você bem perto de mim
Outra vez
Esqueci de tentar te esquecer
Resolvi te querer por querer
Decidi te lembrar quantas vezes
Eu tenha vontade sem nada a perder
Ah... você foi toda a felicidade
Você foi a maldade que só me fez bem
Você foi o melhor dos meus planos
E o maior dos enganos que eu pude fazer
Das lembranças que trago na vida
Você é a saudade que eu gosto de ter
Só assim sinto você bem perto de mim
Outra vez
pintura de Steve Hanks

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

A Um Ausente



Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Simples Fatos


É tão difícil calar quando se tem que calar, 
e falar quando se tem que falar. 
Abrir e soltar; 
Falar e pensar. 
Cantar e sonhar, 
Parar e tocar.
                                Por pra fora sentimentos contidos 
                                Expressar momentos vividos, 
                                Cogitar idéias, 
                                Trocar matérias, 
                                Reviver momentos profundos 
                                Impedir ou pedir pra que parem o mundo.
Retomar o rumo, 
Reerguer os muros, 
Gritar alto, 
Correr, pular 
Respirar fundo 
Voar, andar. 
Ver a vida passar 
Esquecer, relembrar. 
Não olhar para trás, 
Jamais.
                                Aprender com os erros 
                                Sempre.
Reclamar, rejeitar 
Renegar, ressurgir. 
Esses relatos 
São simples fatos, 
Fatos contados, fatos vividos, 
Fatos mudados, fatos lembrados 
Isso nos mostra que 
a vida é feita de 
Simples fatos.
                                Porém, não tão simples quanto aparentam ser. 

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Girassol


Em minha mão fechada cabe o dia, 
o fogo aleatório dos instantes 
e o silêncio que espalham os amantes 
quando termina a festa e nada resta
da luz petrificada entre as montanhas. 
Em minha mão aberta cabe a sombra 
largada pela vida que me espera 
além do inverno, quando a primavera
devolve ao caule a rosa fenecida 
e o que foi volta a ser, e toda perda 
retorna como um lucro imerecido.
A minha mão sustenta um girassol. 
Sou sobra e o excesso, como o vento 
ou como a luz incômoda do sol.

Cansa sentir quando se pensa


Cansa sentir quando se pensa. 
No ar da noite a madrugar 
Há uma solidão imensa  
Que tem por corpo o frio do ar. 
Neste momento insone e triste 
Em que não sei quem hei de ser, 
Pesa-me o informe real que existe 
Na noite antes de amanhecer.
Tudo isso me parece tudo
E é uma noite a ter  um fim 
Um negro astral silêncio surdo 
E não poder viver assim.

(Tudo isso me parece tudo
Mas noite, frio, negror sem fim, 
Mundo mudo, silêncio mudo – 
Ah, nada é isto, nada é assim!)



Antes que eles creçam


Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos seus próprios filhos.
É que as crianças crescem independentes  de nós, como árvores tagarelas e pássaros estabanados.
Crescem sem pedir licença à vida.
Crescem com uma estridência alegre, e, às vezes, com alardeada arrogância.
Mas não crescem todos os dias de igual maneira. Crescem de repente.
Um dia sentam-se perto de você no terraço e dizem uma frase com tal maturidade que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura.
Onde é que andou crescendo aquela danadinha que você não percebeu?
Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços
e o primeiro uniforme do maternal? A criança está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil…E você está agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não apenas cresça, mas apareça!
Ali estão muitos pais ao volante, esperando que eles saiam esfuziantes
sobre patins e cabelos longos, soltos. Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão nossos filhos com o uniforme de sua geração: incômodas mochilas da moda nos ombros. Ali estamos, com os cabelos esbranquiçados.
Esses são os filhos que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas, das notícias e da ditadura das horas. E eles crescem meio amestrados, observando e aprendendo com nossos acertos e erros.
Principalmente com os erros que esperamos que não repitam.
Há um período em que os pais vão ficando um pouco órfãos dos próprios filhos.
Não mais os pegaremos nas portas das discotecas e das festas. Passou o tempo do ballet, do inglês, da natação e do judô. Saíram do banco de trás e passaram para o volante de suas próprias vidas. Deveríamos ter ido mais à cama deles ao anoitecer para ouvir sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de adesivos, pôsteres, agendas coloridas e discos  ensurdecedores.
Não os levamos suficientemente ao Playcenter, ao Shopping, não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas que  gostaríamos de ter comprado.
Eles cresceram sem que esgotássemos neles todo o nosso afeto. No princípio subiam a serra ou iam à casa de praia entre embrulhos, bolachas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscina e  amiguinhos.
Sim, havia as brigas dentro do carro, a disputa pela  janela, os pedidos de chicletes e cantorias sem fim.
Depois chegou o tempo  em que viajar com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível deixar a turma e os primeiros namorados.
Os pais ficaram exilados dos filhos. Tinham a solidão que sempre desejaram, mas, de repente, morriam de saudades daquelas "pestes".
Chega o momento em que só nos resta ficar de longe torcendo e rezando muito
(nessa hora, se a gente  tinha desaprendido, reaprende a rezar) para que eles acertem nas escolhas em busca de felicidade. E que a conquistem do modo mais completo possível.
O jeito é esperar: qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco.
Por  isso os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável carinho.
Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto.
Por isso é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que eles cresçam.

Poesia matemática


Às folhas tantas
Do livro matemático
Um Quociente apaixonou-se
Um dia
Doidamente
Por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
E viu-a, do Ápice à Base.
Uma Figura Ímpar;
Olhos rombóides, boca trapezóide,
Corpo otogonal, seios esferóides.
Fez da sua
Uma vida
Paralela a dela
Até que se encontraram
No Infinito.
"Quem és tu?",indagou ele
Com ânsia radical.
"Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
-O que, em aritmética, corresponde
A almas irmãs -
Primos-entre-si.
E assim se amaram
Ao quadrado da velocidade da luz
Numa sexta potenciação
Traçando
Ao sabor do momento
E da paixão
Retas, curvas, círculos e linhas sinoidais,
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclideanas
E os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E, enfim, resolveram se casar
Constituir um lar,
Uma perpendicular.
Convidaram para padrinhos
O Poliedro e a Bissetriz
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
Sonhando com uma felicidade
Integral
E diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
muito engraçadinhos.
E foram felizes
Até aquele dia
Em que tudo, afinal,
Vira monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
Frequentador de Círculos Concêntricos.
Viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
Uma Grandeza Absoluta,
E reduziu-a a um Denominador Comum.
Ele, Quociente, percebeu
Que com ela não formava mais Um Todo,
Uma Unidade. Era o Triângulo,
Tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era a fração
Mais Ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
E tudo que era espúrio passou a ser
Moralidade
Como, aliás, em qualquer
Sociedade.