Senso Crítico

Senso Crítico

domingo, 28 de dezembro de 2014

Mar de Sargaço


Tudo o que faço ou medito
Fica sempre na metade.
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.
(Fernando Pessoa)

Não consigo, tantas vezes, levantar-me da cama à hora marcada. Não tenho sido capaz de me deitar na altura devida. Sei que devia sorrir em certas ocasiões, mas não o faço. Talvez porque não tenha dormido o suficiente.
Deixei de ajudar na cozinha, aproveitando já não sei que situação extraordinária lá em casa, e depois disso deixei passar o tempo sem retomar esse serviço. Passam-se dias e dias antes de que me convença a executar o gesto de engraxar os sapatos. Qualquer dia vou à escola falar com os Diretores de Turma dos meus filhos…
Já disse a mim mesmo inúmeras vezes que não tornaria a perder um minuto da minha vida sentado sem um objetivo à frente da televisão. Prometi que estaria disponível para as crianças no pouco tempo que passamos juntos, mas o jornal…
Irrito-me com quem faz alguma coisa mal feita, mas nem sempre acabo com perfeição a tarefa que tenho entre as mãos. Os papéis continuam desarrumados na minha secretária. Guardo em mim pequenos rancores. Há dias voltei a esquecer-me do aniversário do meu irmão.
Fiz algumas aldrabices, talvez suficientemente pequenas para que não se possam chamar mentiras, mas suficientemente reais para que a minha consciência não me ache muito honesto.
Mas, tirando tudo isto, trago em mim todos os sonhos grandes e nobres. Sei exatamente qual é o remédio para a situação do mundo. Gostava de gastar a minha vida para o tornar melhor. Dou ótimos conselhos.
E sofro, mesmo a sério, com os que passam fome. Quereria ir até junto deles e ajudar. Dá-me vontade, às vezes, de pegar em armas e ir batalhar ao lado de homens a quem tiraram as casas e vivem na selva e dormem enrolados em cobertores em noites de geada e lutam contra canhões com espingardas desatualizadas. Ou de ser escudo humano. Ou de me tornar poderoso e fazer a justiça toda que faz falta a este mundo.
Gostaria de abraçar todos os que sofrem. Quereria estar presente no local dos terremotos logo nos instantes seguintes e ajudar a retirar dos escombros gente viva. Sou tolinho – ou lúcido? – como a criança a quem perguntam, pelo Natal, que presentes deseja para o mundo.
Muitas vezes me pergunto de que tamanho sou. Não sei se sou este, ou se sou o outro, o da preguiça e da vida morna.
O poema do início continua assim: Que nojo de mim me fica / Ao olhar para o que faço! / Minha alma é lúcida e rica, / E eu sou um mar de sargaço.
Um mar de sargaço.
Quando reparo no que faço, sinto-me longe de mim. E tenho pena. Se existe dentro de um homem um desejo elevado e nobre, é porque o homem deve vir a ser do tamanho desse desejo. Será uma tarefa para a vida toda, mas compreendi que corro o risco de nunca passar de um sentimental meio vazio – e de falhar a vida – se deixar a minha nobreza apenas no plano da imaginação; se fugir daquilo que é concreto e óbvio: o relógio, a ordem, o pequeno sorriso, as pessoas ao lado, a verdade inteira…
Está mais construído do que eu aquele que nunca sonhou coisas longe, mas sabe ser grande no pequeno dever de todos os dias, naquilo que está ao alcance da mão.

E vim a descobrir que é belo um homem estar com plenitude no seu lugar, como a peça de relógio que realiza bem a sua função e permite assim que o conjunto funcione. Que essa é, sem dúvida, uma forma de ir longe e colaborar e construir o mundo.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Embrulho sem Presente


O Natal já existia quando eu vim.
No princípio era haver mais bolos lá em casa, como nas festas de aniversário, e também presentes. E era muito bom verificar que cabiam na mesma casa, conosco, os avós, os tios e os primos. Havia um calor qualquer que faltava no resto do ano. Um aconchego a que não sabia dar nome.
Depois, juntou-se a tudo isto o fato de o Natal acontecer dentro dessa outra coisa maravilhosa que eram as férias. E ganhou ainda mais encanto.
Mas chegou a idade de querer saber a razão funda das coisas. Saí para a rua, onde as pessoas compravam e vendiam presentes envolvidos em papéis de muitas cores. Mas os que compravam e vendiam não souberam dizer-me o que desejava. Falaram-me de como tinham de correr muito nessa época do ano; falaram-me de números e das poupanças que tinham feito; do seu esforço e de como a vida não estava boa para dar prendas.
Nada sabiam acerca do Natal. Deixei-as nas suas absurdas correrias e continuei a procurar. Nas ruas, as luzes não passavam de técnica comercial e, no fundo, tudo estava muito escuro.
E fui ver as famílias, lembrando-me de como, em pequeno, o Natal me rodeava quando estava com os meus. E vi como as famílias continuavam a se juntar. E como continuavam a caber muitos numa casa pequenina. Mas ficavam sentados, passando o tempo em frente da televisão. Havia monossílabos e gritos. E compreendi que era apenas por hábito que se reuniam. Pareceu-me que tinham perdido o Natal, conservando somente a roupagem do Natal. Era como se houvesse o embrulho bonito do presente, mas sem presente dentro.
Achei as famílias disparatadas e saí de novo.
Foi só quando já não sabia onde procurar que tive a minha resposta. Os meus passos vagabundos levaram-me até onde se tinham juntado aqueles que sabiam de dores. Não recordo já se era hospital ou prisão. Ou uma barraca de janelas abertas ao frio da noite. Uma mãe tinha perdido um filho. Outra tinha um filho doente. Um homem jazia imóvel num leito e gemia não sei que doença. Outro tinha um sonho grande e umas mãos pequenas, e sofria de não ser capaz. Havia cegos e alguns que, vendo, desejavam ver de outro modo.
Não sei contar todos os casos, mas posso dizer que vi uma oração nos lábios de cada um deles; nos olhos de cada um, uma lágrima e, simultaneamente, um brilho de esperança. Os que podiam tinham-se ajoelhado – era quase meia-noite – à beira de uns bonecos de presépio, entre os quais estava o daquela que havia de ser mãe.
Uma mãe ainda sem o filho nos braços… mas era quase meia-noite!
E compreendi: o Natal é só de quem há muito espera. De quem ainda não se encheu. É só de quem sonhou além das coisas e se vê ainda muito longe. É de quem tem chorado. De quem olha para dentro de si mesmo e sente medo. De quem não encontrou ainda o seu consolo.
O Natal existe apenas onde existe a falta. Nós, que temos tudo – que pensamos que temos tudo – sofremos da terrível pobreza de não sabermos sequer que somos pobres.

O Natal não é para nós. Ainda não somos capazes de o entender…

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

O Processo


O processo é sempre o mesmo e resume-se nisto: quem não consegue viver de acordo com a sua forma de pensar corre o risco de que o seu pensamento dê uma volta e se adapte  à sua nova forma de viver…
Primeiro, descobrimos que se torna muito difícil moldar a nossa vida por aqueles princípios que a nossa consciência nos indica como sendo bons. É tudo muito complicado. Exige demasiados esforços. Não parece uma forma de viver talhada à nossa pequena medida.
Depois, ao desistirmos de viver desse modo – e porque a consciência não se cala – não encontramos paz dentro de nós, surgindo como solução a triste possibilidade de tentarmos enganar a consciência.
(Dizem que os tormentos interiores são a pior das torturas, e que as pessoas tudo fazem para se libertarem deles…).
Começamos então a procurar – para os apresentar a nós mesmos – argumentos que sugiram estar errada a nossa forma inicial de pensar: que tínhamos sido ingênuos; que déramos demasiada importância aos contos de quando éramos pequenos e às tolas superstições dos nossos pais ou dos nossos avós; que as coisas mudaram e os tempos são outros.
Nesta altura, basta um pequeno passo para passarmos a admitir que, durante séculos e séculos, o mundo inteiro esteve enganado, procurando o bem e a felicidade nos locais errados. Felizmente – pensamos – o progresso veio dissipar essas trevas medievais… e trazer-nos uma nova moral, mais ao nosso jeito: um bem e um mal que se adaptem aos  nossos interesses, que variem consoante as necessidades.
No entanto, deparamos nesta fase com um sério problema: a coisa não resulta! A consciência diz-nos que não pode julgar segundo uma lei que fomos nós mesmos a inventar. Diz-nos claramente que a lei a seguir deve estar fora de nós e bem alto.
E é neste momento que sucede, por vezes, lançarmo-nos, como último recurso, às leis dos países. Se essas leis passassem a autorizar aquilo que fizemos – ou que fazemos e não queremos deixar de fazer – encontraríamos talvez sossego…
Não é outra a causa das constantes aberrações que vemos tomarem a forma de lei nos mais diversos países. Procuramos disfarçar com roupagens de legalidade aquilo que de mais sujo existe dentro de nós, os nossos fracassos, os interesses inconfessáveis, a nossa pouca vontade de fazer mais e melhor.
Vemos, por exemplo, como aqueles que abortaram estão entre os principais activistas pró-aborto, lado a lado com os que ganham dinheiro com ele.
E cada um de nós já está, decerto, a lembrar-se de outros exemplos. Também dentro de si mesmo.
Mas sucede que o processo não resulta mesmo! A consciência, ao cumprir o seu papel de juiz, não se deixa enganar como uma criança. E isso nota-se muito bem na continuação da ausência de alegria e de paz.

O caminho é outro, embora seja escarpado e agreste.

domingo, 7 de dezembro de 2014

O mundo põs-moderno na visão de Zygmunt Bauman


Um viciado do Facebook gabou-se para mim de que havia feito 500 amigos em um dia. Minha resposta foi que eu vivi por 86 anos, mas não tenho 500 amigos. Eu não consegui isso. Então, provavelmente, quando ele diz "amigo", e eu digo "amigo", não queremos dizer a mesma coisa. São coisas diferentes.
Quando eu era jovem, nunca tive o conceito de "redes". Eu tinha o conceito de laços humanos, de comunidades, esse tipo de coisa, mas não redes. Qual é a diferença entre comunidade e rede? A comunidade precede você. Você nasce numa comunidade. Por outro lado, temos a rede. O que é uma rede? Ao contrário da comunidade, a rede é feita e mantida viva por duas atividades diferentes. Uma é conectar e a outra é desconectar.
E eu acho que a atratividade do novo tipo de amizade, o tipo de amizade do Facebook, como eu a chamo, está exatamente aí. Que é tão fácil de desconectar. É fácil conectar, fazer amigos. Mas o maior atrativo é a facilidade de se desconectar. Imagine que o que você tem não são amigos online, conexões online, compartilhamento online, mas conexões off-line, conexões de verdade, face a face, corpo a corpo, olho no olho.
Então, romper relações é sempre um evento muito traumático. Você tem que encontrar desculpas, você tem que explicar, você tem que mentir com frequência e, mesmo assim, você não se sente seguro porque seu parceiro diz que você não tem direitos, que você é um porco, etc. É difícil, mas na internet é tão fácil, você só pressiona delete e pronto.
Em vez de 500 amigos, você terá 499, mas isso será apenas temporário, porque amanhã você terá outros 500... E isso mina os laços humanos.
Os laços humanos são uma mistura de benção e maldição. Benção, porque é realmente muito prazeroso, muito satisfatório, ter outro parceiro em quem confiar e fazer algo por ele ou ela. É um tipo de experiência indisponível para a amizade no Facebook; então, é uma benção. E eu acho que muitos jovens não tem nem mesmo consciência do que eles realmente perderam, porque eles nunca vivenciaram esse tipo de situação.
Por outro lado, há a maldição, pois quando você entra no laço, você espera ficar lá para sempre. Você jura, você faz um juramento: até que a morte nos separe, para sempre. O que isso significa? Significa que você empenha o seu futuro. Talvez amanhã, ou no mês que vem, haja novas oportunidades. Agora, você não consegue prevê-las. E você não será capaz de pegar essas oportunidades, porque você ficará preso aos seus antigos compromissos, às suas antigas obrigações.

Então, é uma situação muito ambivalente. E, consequentemente, um fenômeno curioso dessa pessoa solitária numa multidão de solitários. Estamos todos numa solidão e numa multidão ao mesmo tempo.

sábado, 6 de dezembro de 2014

Se Rissemos


Damos demasiada importância a nós mesmos. Levamo-nos demasiado a sério e daí resulta uma série de coisas desagradáveis para nós e para os que convivem conosco.
É frequente que uma frase ou um gesto de outra pessoa ganhe a nossos olhos o tom de uma ofensa. Somos doentiamente sensíveis neste ponto. Se alguém cruzar conosco e não nos cumprimentar, ou se não nos cumprimentar com um certo tom de voz, ou se não utilizar o sorriso que esperávamos, logo entendemos que não nos estão a considerar como deviam. Se discordarem de nós numa qualquer pequena coisa, colocamos imediatamente essa atitude num plano de ofensa pessoal. Se não for possível darem-nos aquilo que desejávamos, ou com a plenitude que desejávamos, isso significa que não gostam de nós ou, até, que nos têm um ódio incompreensível. E se se esquecerem de uma coisa que tínhamos pedido… Ou se o nosso aniversário não tiver desta vez uns festejos tão brilhantes… Ou se nos fizerem uma crítica, mesmo com boa intenção… Ou se não derem total atenção às nossas palavras…
Ficamos com essas “ofensas” cá dentro, na forma de rancores, ressentimentos. Ou então – se compreendermos que guardar rancores é como tomar veneno e esperar que assim a outra pessoa morra… – soltamo-los, à primeira oportunidade, de mil maneiras diferentes, como quem dispara facas afiadas.
Há talvez problemas na nossa vida que resultaram disto. Tem havido guerras, de várias dimensões, com esta origem. Tem havido famílias destruídas por causa disto.
Por que é que achamos que temos direito a tanta consideração? Por que é que aquilo que consideramos os nossos direitos é, a nossos olhos, tão importante?
Não somos o centro do mundo. Os outros, quando lidam conosco, não têm nenhuma razão para terem uma impecabilidade e uma absoluta concentração nos mais pequenos pormenores. É bastante razoável que estejam a pensar noutra coisa. Que tenham os seus próprios problemas. Que estejam nesse dia com dor de cabeça, ou que tenham um filho doente. É natural que lidem conosco como com alguém igual a eles, e não como com Deus.
Somos, cada um de nós, um bicho da terra bem pequeno. Um grão de areia. Menos que um grão de areia, em duração, porque nós vamos e os grãos de areia ficam.
Somos apenas um de biliões de habitantes temporários deste pequeno planeta, que dá voltas curtas em redor de uma insignificante estrela que não passa de uma no imenso número das estrelas.
Quando nos sentamos a ver passar um rio, a verdade é que é o rio que está a ver-nos passar. Porque, depois de nós, o rio estará ali.
Já nos disseram – mas não compreendemos – que nos tornamos grandes e importantes e eternos quando nos damos aos outros sem esperar nada deles. Sem desejar compensações. É talvez este o único direito que devíamos estimar: o direito de não querer direitos.
É possível que uma maneira de nos libertarmos deste egocentrismo (eu no centro), que nos afasta da felicidade e da grandeza, seja o bom humor.
Devíamos rir até à gargalhada quando dentro de nós – dentro do pequeno grão de areia – se ergue o rei ofendido, o nobre desconsiderado, o deus incompreendido reclamando os seus direitos. Devíamos rir porque… é ridículo. Devíamos rir como quando vemos, no Carnaval, a criança colocar um bigode postiço sobre os lábios. Ou como quando vemos alguém levar de passeio pela rua um cão que foi embrulhado num chapéu, numa camisolinha e nuns sapatinhos…

Se ríssemos, talvez desabasse esse palácio artificial, falso, sob o qual temos vindo a abrigar-nos.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Vinhas de Longe



Toda a aldeia se debruçou sobre ti quando chegaste.
Vinhas de longe e amarraste o teu cavalo à oliveira,
Mas ainda não sabíamos que trazias um sol por dentro.
Detidamente te olhamos depois: vimos como sorrias ou calavas.
Destes passos entre nós e é certo que foste um dos nossos:
Talvez termine aqui o teu caminho…
Fica: se o nosso olhar puder deter-se em ti
Teremos a alegria sempre conosco.
Cantaremos guardando o rebanho e cuidando dos nossos campos.
Fica: podes passear entre as searas
E conversar à noite com os nossos velhos.
Contarás histórias aos pequenos e nós aprenderemos sorrindo.
Havemos de chorar, se tu partires… Não à tua frente,
Mas as nossas ovelhas e os olivais da colina
E o velho moinho saberão que estamos tristes.
É certo que te trazemos conosco enquanto trabalhamos
Ainda que estejas lá em baixo, junto ao poço,
Mas temos medo do tempo e desconfiamos de nós.
É que o nosso dia está cheio de regressos a casa
E a mulher vem espreitar e os filhos enrodilham-se no arado:
Nunca tivemos uma luz que o tempo não voltasse a trazer depressa.

Fica: talvez não saibamos ler-te na ausência:
Sabemos onde é o poço,
Mas o mundo pode ser para nós longe demais…