Senso Crítico

Senso Crítico

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Queimar os Navios



Contam que Pizarro, o conquistador espanhol, pouco depois de desembarcar na América do Sul com os seus homens, mandou queimar os navios que os tinham levado até lá.
Estranha atitude, que poucos se teriam atrevido a tomar, pois havia um oceano a atravessar para regressarem a casa. Mas a verdade é que também não foram muitos aqueles que deixaram o seu nome na História por terem realizado feitos notáveis…
É certo que podemos criticar as conquistas de Pizarro e a forma como as realizou, mas este gesto concreto é, sem dúvida, valioso.
Conhecia a extrema dificuldade da tarefa que perseguiam. Sabia que viriam perigos incontáveis, terrores, mortes, doenças. Temia o desconhecido, que se afigurava pavoroso. Conhecia os seus homens e conhecia-se a si mesmo. Receava que – depois de uma derrota, perante o desânimo provocado por algum obstáculo aparentemente intransponível – pensassem apenas na forma mais rápida de chegar de novo à costa, entrar nos barcos e regressar a casa.
Mas não admitia outra coisa senão cumprir o objetivo. Cortou a retirada. E os navios arderam. O único caminho, a partir de então, era em frente e até ao fim. E conseguiu.
Conhecemos, decerto, casamentos que correram mal e casamentos que correram bem.
Mas não é exatamente assim. Todos esses casamentos correram mal, no sentido de que em todos houve, com toda a certeza, dificuldades sérias, dessas que agora facilmente consideramos intransponíveis.
O que existiu foi uma diferença de atitudes. Houve aqueles que tinham deixado uma porta aberta, pelo menos dentro de si, e por ela se escaparam quando tudo estava a ficar “insuportável”. E houve, por outro lado, os que – por não admitirem outra solução – se empenharam em resolver, dentro do único caminho que podiam conceber, os problemas existentes. E a verdade é que os resolveram.
Todas as coisas grandes e duradouras que até hoje se fizeram envolveram um acto semelhante a este do conquistador espanhol. Envolveram a decisão de fechar as portas à possibilidade de bater em retirada. Resultaram de decisões que se mantiveram fortes como o aço ao longo do tempo, perante a dor e o sofrimento e as dificuldades mais sérias.
Hoje quase não somos capazes de nos abandonarmos ao amor. Não somos capazes de um amor que seja inquebrável. Dizemos “quero-te para sempre” – e somos sinceros – mas não somos capazes de manter o amor e a palavra que dissemos. Tornamo-nos moles. Somos caricaturas de homens e de mulheres, porque temos pouco de vontade forte, de liberdade verdadeira.
Há, porém, uma coisa que ainda podemos fazer para salvar o mundo, para resgatar um pouco daquilo que destruímos. Podemos, pelo menos, tentar educar as nossas crianças de forma a que elas venham a ser pessoas de palavra, gente honrada, com uma lealdade a toda a prova, com forte determinação. Tentar educá-los… tanto quanto é possível que alguém que não dá exemplo eduque.
Podemos fazer isso. Se eles vierem a ser capazes de constituírem lares sólidos, famílias consistentes, a nossa vida não terá sido, apesar de tudo, inútil.

Se calhar, o que temos feito até agora foi procurar justificações para não termos ido até ao fim do caminho. Tornamos o divórcio numa coisa natural, para não nos sentirmos culpados. Seria belo que fôssemos agora capazes de dizer: “errei, mas olha para mim e segue outro caminho”.

sexta-feira, 20 de abril de 2018

Menina Encantada




“Menina Encantada” é o nome de um navio que costuma estar amarrado no porto de Sesimbra, ao lado de muitos outros. Uma vez, ao reparar nele num dos meus passeios, lembrei-me da Susana.
A Susana é minha aluna e é também uma menina encantada.
Não vou fazer-lhe aqui um elogio; vou, sim, elogiar os pais dela. A Susana tem uma idade na qual ainda não se conquistaram virtudes. Nessa fase da vida ainda não temos virtudes próprias: refletimos as virtudes de quem nos educou.
Uma vez disse-lhe que tinha uma grande admiração pelos pais, o que a deixou espantada, visto que nunca tive o gosto de conhecer pessoalmente os senhores. Podia ter respondido ao seu espanto dizendo que sim, que conhecia muito bem os pais porque a conhecia a ela. Mas preferi não o fazer. Um dia ela compreenderá por si mesma a verdadeira razão. Levei o caso para a brincadeira. Disse-lhe: “Eles aturam-te pacientemente há muitos anos, e eu, só de te aturar durante três horas por semana, já tenho vontade de te atirar pela janela…”.
A Susana é uma menina encantada, com um encanto muito mais do que superficial. Tem assim uma espécie de perfume interior que se sente e não se sabe explicar bem. É agradável estar ao lado dela. Os colegas procuram-na, sentam-se à sua beira, brincam e conversam com ela. A escola não é bem a mesma coisa quando ela não está. Não tem graça pensar num programa se ela não puder estar presente.
A Susana tem uma aparência que não dá nas vistas; não é rica; veste-se modestamente; não fala alto. Escuta o que os outros dizem. Não se pinta, como sucede com algumas das companheiras. Mas está sempre contente. Quando tem o que desejou e quando não o tem. Porque também lhe passam pela cabeça todas as coisas que passam pelas cabeças das colegas. Uma vez ouvi-a dizer que não usava não sei que gênero de brincos, destes modernos, porque os pais não a deixavam usá-los. Não era uma queixa; foi uma coisa que veio à conversa, em grupo, durante um intervalo, com a maior das naturalidades. .
A Susana fez-me pensar.
Todos gostam de estar com ela porque está sempre bem-disposta. E está sempre bem-disposta porque se habituou a aceitar e a obedecer. Quando nos habituamos a não esperar muito da vida, qualquer coisinha nos deixa contentíssimos.
Ora isto é o contrário do que se passa com tantas e tantos, que se tornaram constantemente insatisfeitos e rabugentos por terem sido acostumados a ter aquilo que desejavam: aquilo que viam nas montras, os pratos preferidos, os objetos e brinquedos que viam os outros usar na escola, certas marcas de roupa. Quando alguém vai por esse caminho, deseja sempre mais, sempre diferente, sempre melhor, sempre mais caro, sempre novo. E passa de uns campos para outros, até chegar ao convencimento de que tem direito a que a vida satisfaça todos os seus desejos.
Às vezes não reparamos bem no alcance de certas coisas que fazemos enquanto educadores. A verdade é que quando damos a uma criança todas as coisas que ela deseja lhe damos também o aborrecimento. E a incompatibilidade futura com as arestas da vida.

sábado, 3 de fevereiro de 2018

A Guilhotina da Igualdade


Independência Ou Morte!


Muito Mais Simples




Numa altura em que a droga adquire – no nosso país e no mundo – proporções assombrosas, destruindo pessoas e famílias, vale a pena dizer que existe uma solução pequena e fácil, da qual nos temos andado a esquecer.
Quando se verifica o fracasso de todos os meios usados para impedir a proliferação da droga e se experimentam outros, mirabolantes – que muitas vezes não passam de absurdas concessões e de vis desistências -, vale a pena dizer que a solução não se encontra em sistemas de cooperação internacional, em vigilância policial, em complicados processos intelectuais ou em experimentar novos métodos.
O problema da droga – como quase todos os outros – é um problema de educação. Resolve-se nas famílias, resolvendo os problemas das famílias. Não é preciso ir mais longe.
Mas educar, no que diz respeito à droga, não consiste em explicar aos jovens os malefícios dela. Não consiste apenas em preveni-los contra um mal que, vindo de fora, os pode destruir.
É muito diferente disso. E um pouco mais trabalhoso.
Todas as pessoas procuram a felicidade e têm tendência a confundir felicidade com prazer. E todos tendem a conseguir a felicidade com o mínimo de esforço possível.
Acontece que a droga está no final do caminho do prazer fácil. Ainda não se descobriu coisa que dê mais prazer. Quando se vai pela vida correndo de prazer em prazer, sucede que se deseja sempre mais, porque aquilo que se tem nunca é bastante. São precisos prazeres cada vez maiores. E muitos chegam à droga através desse caminho.
Outros chegam lá pela ausência de um sentido para as coisas e para a vida.
Na família pode ensinar-se – principalmente através do exemplo dos pais – que existe uma felicidade que não reside nos prazeres do corpo, mas resulta de um comportamento reto. A felicidade nasce de se estar em paz com a consciência; brota do dever cumprido; vem-nos da vitória alcançada sobre nós mesmos, de termos realizado – apesar dos obstáculos interiores e exteriores – coisas boas.
É preciso que os filhos saboreiem muitas vezes todo o prazer que existe em terem terminado com perfeição uma tarefa que quiseram começar ou que lhes foi confiada. Devem ganhar gosto pelo trabalho bem terminado. Compreenderão que o prazer interior que sentem vale bem o esforço que aquilo lhes custou.
E quem diz o trabalho bem terminado diz muitas outras situações atrás das quais se esconde – como um tesouro – a felicidade: dizer a verdade mesmo quando custa muito, dedicar tempo e esforço a uma atividade que só aproveita a outros, tentar que nasça um sorriso em quem está triste, pedir perdão, fazer as pazes…
Tudo coisas “difíceis”…
Se, desde pequenos, se habituarem a procurar a felicidade nessas coisas, que são muitas vezes áridas, não irão procurá-la nos prazeres fáceis. Se, desde sempre, relacionarem felicidade e alegria com esforço – com coisas difíceis – desconfiarão quando os amigalhotes lhes acenarem com um prazer-que-não-custa-esforço.

E, entretanto, terão aprendido o sentido de todas as coisas.

domingo, 21 de janeiro de 2018

O Leque




Um homem consumido pela febre e pelas dores. Com uma angústia profundíssima porque verifica que a sua situação piora notavelmente a cada dia que passa.
Que faz esse homem para contrariar a febre que se vai apossando do seu ser, que o vai minando, que lhe vai destruindo as entranhas? Abana um leque junto da cabeça, nada mais. Combate o calor que lhe sobe ao rosto e que não passa da mais superficial das consequências do trabalho invisível e muito interior do terrível micróbio.
É um quadro patético. Teríamos vontade de rir, se não fosse, ao mesmo tempo, muitíssimo triste.
É, talvez, o quadro da nossa sociedade ocidental.
Há muito que aprendemos que a forma de resolver um problema consiste em descobrir-lhe a raiz e atuar nela. Eliminando o micróbio, acaba-se com a febre. O homem que abana o leque junto da cabeça parece não saber isto. Ou, então, não quer mesmo resolver o problema, por qualquer razão que não conseguimos entender.
Julgamos e condenamos os pedófilos. É, de certo modo, patético: um abanar de leque… Tem a sua utilidade, claro – alguma coisa temos de fazer para defender as nossas crianças -, mas não muito mais utilidade que a de abanar um leque junto de uma cabeça febril. Se não se for à raiz do problema, hão de vir a ser presas muitas mais pessoas e continuará a haver muitas vítimas pelo tempo fora…
Aquilo a que se chama pedofilia tem duas componentes fundamentais: a perversão da sexualidade e a utilização de outros seres humanos para satisfação própria. Era aí que devíamos travar a nossa batalha. Estes são dois males profundos da nossa sociedade, com outras manifestações, de resto, além daquela que agora nos assusta.
Temos admitido entre nós a pornografia, em diversas formas. Mas a pornografia desvirtua o sexo, e a pedofilia é uma das aberrações onde se pode chegar quando se desvirtua o sexo. Logo, será necessário eliminar a pornografia – e é apenas um exemplo – se realmente quisermos terminar com tudo isto. Não é razoável querermos uma coisa e não querermos as suas inevitáveis consequências. Não é possível, porque vivemos na realidade. Quem anda à chuva molha-se…
E a utilização dos outros, o dispor deles para os nossos interesses… é uma história antiga. Nisso já descemos ao mais fundo que era possível descer, quando permitimos que as nossas leis autorizassem o aborto.
Tínhamos eliminado a escravatura. Quase não havia pena de morte. Tínhamos construído hospitais e lares. Estávamos a elevar-nos. Mas, em poucas dezenas de anos, mergulhamos de tal modo que batemos com estrondo no fundo mais sombrio. Depois do aborto, nada será de espantar. Se continuarmos assim, um dia aceitaremos a pedofilia – dando-lhe outro nome, evidentemente, como quando chamamos ao maior dos crimes “interrupção voluntária da gravidez”.
Depois do aborto, por termos destruído o único alicerce em que se pode fundamentar a sociedade – o respeito incondicional e admirado pela vida humana – não é de espantar que todo o edifício social se desmorone.
Quem admite o aborto não tem sustento racional para condenar a pedofilia. Porque a pedofilia consiste em fazer o que se quer da criança que está fora do ventre da mãe, e o aborto consiste em fazer o que se quer da criança que está dentro do ventre da mãe. A essência do ato não muda só porque ele é realizado de uma forma menos visível. Permanece, como fundo, o uso da criança – da pessoa humana – como se fosse uma coisa.

A mesma mentalidade da escravatura…