Senso Crítico

Senso Crítico

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Ser Sem Ser


Somos do mais tolo que existe. Acontece-nos com frequência sermos vítimas da nossa falta de ligação à realidade. A televisão, os filmes, os computadores… levaram-nos até muito longe daquilo que é real. Talvez nos falte aquele contato diário com o campo, com os ritmos naturais, com os tempos de uma plantação de batatas.
Na nossa vida – em tantas circunstâncias diferentes – sucede com demasiada frequência que achamos ter direito aos frutos sem que tenha havido antes a árvore, sem que tenha havido antes a semente no mar da terra. Não sabemos esperar; não descobrimos a relação entre o tempo e os frutos do tempo, entre o esforço e os frutos do esforço. A causalidade é uma coisa desconhecida para nós.
A preguiça faz-nos imaginar que existem, além do mundo das máquinas, outros âmbitos em que basta carregar num botão para fazer surgir resultados.
E tanto nos convencemos de tudo isto que em muitos aspectos andamos inchados por fora e vazios por dentro. Andamos pintados, disfarçados… Porque quisemos ser sem ser. Ser porque sim, por decreto… Ser sem nos termos construído, sem a paciência, sem o esforço, sem a espera.
Não é possível fazer noitadas frequentes e ser-se um bom atleta; não é possível ser-se honesto sem antes disso ter dito muitas verdades daquelas difíceis; não é possível eliminar a droga sem antes disso ter edificado a família; não é possível acabar com a pedofilia permitindo a pornografia; não tem qualquer sentido armar-se em defensor dos direitos humanos e permitir o aborto.
Semente, árvore, fruto. Tempo. E, durante o tempo, esforço, dor, teimosia da boa, desânimo e de novo esperança.
Semente, árvore, fruto. De baixo para cima, do pequeno para o grande, do que não se vê para aquilo que é visível. O resto é mentira.
Mentira é a amizade feita à base de palmadinhas nas costas e da conjugação de interesses muitas vezes pouco nobres. Ou à base de noites bem bebidas em discotecas. Mentiras são os livros de belas capas, promovidos por poderosas campanhas publicitárias, e que por dentro têm… lixo. E, tantas vezes, não passam de mentiras as gravatas e os automóveis e as motas e as roupas de marca…
Quando não estamos dispostos ao esforço necessário para nos tornarmos fortes, belos, sérios, credíveis, podemos chegar a parecê-lo. Mas isso de pouco nos adianta, porque a mentira é estéril, e tudo o que com ela se consegue é fugaz, é ar e vento. E dói por dentro com dor verdadeira.
É pena que nem todos tenhamos passado pela experiência de trabalhar na construção de uma casa. Que nos tenhamos limitado a habitar casas feitas. Teriam sentido para nós palavras como “alicerce” ou “fundamento”. Saberíamos que um edifício cresce tijolo a tijolo; que a sua força reside no que não se vê; que não se começa a fazê-lo pelo telhado ou pelos acabamentos.

Aquilo que é bom necessita de tempo e de esforço e da repetição de gestos pequenos, muitas vezes dolorosos.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Tanto de Amor se Disse


Não tinham conseguido filhos. Por isso resolveram ir a uma dessas instituições que recolhem crianças abandonadas manifestar o seu desejo de adotarem uma criança.
Os responsáveis da instituição, enquanto tratavam da papelada, foram avisando que se tratava de um processo moroso e nada simples. Mas, quando foi feita a pergunta sobre que preferências tinha o casal quanto à criança a adotar, o processo descomplicou-se bastante. É claro que não se poderiam evitar umas quantas maçadas em forma de papel… mas a preferência que o casal manifestara era tão estranha, tão insólita… Talvez não fosse assim tão difícil.
Tinham dito: “Queremos ficar com uma criança que ninguém deseje; aquela que tenha menos hipóteses de ser adotada. Não nos importa que seja deficiente. E, se puderem ser duas, melhor”…
Tão estranho, tão inusitado.
E, no entanto, tão natural, tão bonito. Tão verdadeiramente de acordo com a nossa natureza.
Já nos parece estranho ver uma manifestação de amor. Já nos parece estranho que alguém olhe para uma criança como um enorme poço vazio que é preciso encher gota a gota, balde a balde. Com sacrifício e dor. Sem compensações, sem exigir nada em troca – o amor não tem outra compensação que não o próprio amor.
Li há muito tempo, num qualquer livro de poesia, dois versos que de vez em quando me vêm à cabeça, a propósito de muitas coisas a que vou assistindo. Não sei exatamente quem os escreveu, nem com que intenção foi escrito o poema de que faziam parte, o qual, de resto, esqueci totalmente. Mas os versos falam, mesmo sem a sua moldura original:
“Tanto de amor se disse / que não sei como dizer que amor é outra coisa”.
Tanto do amor se tem dito, que é quase um ato pornográfico falar, ou escrever, sobre amor.
Os homens descobriram há muitos séculos que o amor é o mais importante de tudo; que é ele que move o mundo; que é ele que guia os passos dos humanos; que nada mais interessa. Mas temos assistido a uma mudança subterrânea: continuaram a dar a mesma importância ao amor, mas mudaram subtilmente o conteúdo da palavra. Chamaram amor a outras coisas, à superfície do amor, à escória do amor.
Construíram uma mentira gigantesca.
Têm chamado amor a coisas nas quais não conseguimos descobrir senão egoísmo, equilíbrio de egoísmos, negócio.
Quem diz que amou só porque sentiu prazer não entende nada de amor. Porque quer colher, enquanto o amor é uma força que leva a semear.
Quem dá porque quer receber, ou quem se dá só enquanto dar não dói, é um comerciante. Calcula. O que equivale a dizer que nunca amou. E que a pessoa amada é uma mercadoria – sujeita, como as mercadorias, a critérios de qualidade e a prazos de validade.

Se nada interessa senão o amor, e se o amor é isto, temos aqui uma explicação para tantas coisas tristes que temos observado em nós e à nossa volta…