Senso Crítico

Senso Crítico

sábado, 31 de outubro de 2015

Ponto de Passagem


As mulheres têm coisas que irritam um homem até mais não poder. Possuem uma sensibilidade exagerada, que as leva a amuar por tudo e por nada; tendem a dizer as coisas apenas por meias palavras; são vingativas; fartam-se de gastar dinheiro em roupa; ligam imenso ao que as outras dizem; insistem constantemente em miudezas que mais ninguém consegue ver; se as deixarem, falam durante horas seguidas de coisas desinteressantes.
Os homens, por seu lado, levam qualquer mulher ao desespero. Comportam-se, irresponsavelmente, como crianças grandes; não reparam nas coisas mais óbvias; são desleixados no vestir, na limpeza, na arrumação; ligam mais ao trabalho e aos amigos do que ao que se passa em casa; preferem o futebol da televisão aos filhos e à mulher.
É, portanto, irracional que o homem e a mulher se juntem um ao outro e constituam uma família. É por isso que se torna necessário que a natureza – para os enganar – arranje uma temporada de cegueira mental, a que se chama paixão, e os atraia através de um instinto puramente animal.
Fora dessa temporada, as coisas estão no seu devido lugar: durante a infância, os rapazes preferem conviver com rapazes e as raparigas com raparigas; depois de passar a paixão, há aqueles conflitos que todos conhecemos e os arrependimentos tardios de quem se deixou cair na armadilha…
Mas não! As coisas não são bem assim.
Acontece que estes raciocínios assim tão redondinhos estão muitas vezes longe de serem verdadeiros, e não expressam com exatidão a realidade das coisas.
A natureza não nos enganou.
Uma das coisas mais maravilhosas que ela nos oferece é, sem dúvida, a forma harmoniosa de o homem e a mulher se completarem. Em geral, que seria de um homem sem uma mulher? E o que seria de uma mulher sem um homem? Não passariam de seres incompletos, qualquer coisa como uma faca que não tivesse lâmina, ou que não tivesse cabo.
A paixão é uma coisa maravilhosa, que leva uma mulher e um homem a unirem as suas vidas no objetivo comum de fundarem uma família e educarem os filhos. É, porém, necessário que a paixão, para ter sentido, se torne fecunda. Ela não deve nunca ser considerada um fim em si mesma, porque, pela sua própria natureza, não pode ser senão um ponto de passagem.
Mas hoje os casais não têm filhos, ou têm poucos filhos, ou não se empenham – pai e mãe – na educação dos filhos como grande objetivo da sua união.
E, então, já não há quase nada que os una. A paixão, ao inevitavelmente passar, deu lugar a… nada. A um aborrecimento vivido em comum. A um vazio no qual não têm ponta de sentido as qualidades femininas e as qualidades masculinas, por falta do objeto a que deviam aplicar-se.
Só têm então relevo os defeitos, ou as qualidades que, carecendo de objeto, se desvirtuaram e se tornaram maçadoras.

A natureza não errou. Nós é que saltámos para fora dos seus planos. Nada que, em grande parte dos casos, não tenha emenda.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

O Mundo Esta Salvo


Recomeçaram as aulas. É tempo de retomar gestos familiares, em desuso durante umas semanas. Tempo de estar de novo à frente de um grupo desconhecido de alunos que esperam que lhes diga alguma coisa. Digo o meu nome e nunca sei muito bem o que devo dizer a seguir, mas as coisas acabam sempre por se comporem. Quando penso no que devo dizer, nunca digo aquilo que pensei previamente. E já me deixei disso.
Felizmente, daqui a poucos dias já nos conheceremos perfeitamente. Nunca precisamos de muito tempo para nos conhecermos bem… O que não for dito agora virá mais tarde e permanecerá. Saberão – não é preciso que lhes diga agora – que farei com que se cansem. Saberão que para chegar ao poema é preciso exercitar antes a sintaxe e outras coisas aborrecidas. Hão de queixar-se, mas eu terei vontade de rir quando vierem a descobrir, surpreendidos, que são capazes do poema. Só lá para o 3º Período… Antes disso, terão de escrever e apagar, escrever de novo, ouvir uma reprimenda, levar um recado para os pais…
Recomeçaram as aulas. Há exatamente um ano eu era um ano mais novo. Depois disso passaram 365 dias em que me encantei e me desencantei; em que me cansei; em que aprendi o que gostaria de não ter aprendido; em que descobri mais coisas que já não sou capaz de fazer. Envelheci. Mas os meus alunos, cujos rostos ainda não sei associar aos nomes, têm os mesmos 13 anos de há um ano atrás. É, de certa forma, estranho… O tempo passou por mim, mas não por aqueles que se encontram agora sentados à minha frente.
É sempre assim. E, sempre que é tempo de suceder isto, eu sei que o mundo está salvo. Enquanto houver jovens de 13 anos, o mundo está salvo.
Porque as minhas alunas adoram crianças – quase todas desejam ter, no futuro, profissões como educadora de infância ou médica pediatra. Porque gostam imenso de animais e gostariam muito de praticar equitação, se isso aqui fosse possível. Porque têm uma letra bonita e põem a língua de fora enquanto escrevem a composição que lhes mandei fazer.
Porque os meus alunos são saudavelmente tontos, como é próprio desta idade, mas têm neles um espaço para o sonho e para uma ambição que não fechou ainda as portas à nobreza. Porque têm um dinamismo enorme e não conseguem estar quietos durante muito tempo. Escrevem, no papel que lhes entreguei, que tencionam tirar um curso superior, mas ainda não sabem qual… e isso é delicioso.
Porque sabem dizer os seus defeitos e as suas qualidades com uma clareza notável, e ainda não aprenderam muito bem a ocultar, a torcer, a disfarçar.
Porque há ali vidas abertas a aprender, a ser mais, a ser melhor.
Recomeçaram as aulas. E em cada um dos alunos deste grupo – no meio do qual não me sinto perdido porque… afinal há muitos anos que os conheço – há um sorriso, uma promessa e um mistério.

E encho-me de esperança, porque é possível que não reparem muito em nós e no nosso mau exemplo. Porque pode acontecer que se cansem da podridão que lhes servimos na televisão e se dediquem a ter amigos, a ouvir música, a ler, a pintar, a escrever, a disparates sadios. Porque talvez muitos deles encontrem ao longo dos próximos anos uma orientação para a sua força, um norte para a sua ambição, um ombro para os seus desânimos: alguém sem medo de lhes dizer a verdade sobre a vida, o amor, o sofrimento e a morte.