Senso Crítico

Senso Crítico

sábado, 17 de dezembro de 2016

É Tão Bom Ser Pequenino


Recordo o cheiro dos lençóis lavados, a guerra para lavar os dentes, histórias contadas antes de adormecer. O desejo de chegar a casa, o aconchego e, depois, outra vez a vontade de sair.
Corria para a minha mãe quando caía e me magoava. Não para o meu pai, porque seria preciso dar muitas explicações e ouvir de novo o racional “Eu já te tinha avisado…”.
Um prato especial nos dias de festa. Birras. É preciso vestir aquela roupa nova. É a tua vez de lavar a louça.
Não sei muito bem a partir de que idade é que os irmãos deixam de ser irritantes…
Depois do jantar fazíamos jogos e entretínhamo-nos uns com os outros. Por vezes, quando era verão, saíamos a passear e apanhávamos pirilampos.
A chuva lá fora, o calor dentro de casa. Um livro. Um amigo que vem lanchar. Um ralhete porque desta vez passamos dos limites e as calças vêm cheias de lama. Já te disse tantas vezes que não se deve deixar aí a roupa suja…
Acordar com um beijo. Adormecer com uma oração.
Natal. Os primos. Visitas a casa dos avós. Brincadeiras. Às vezes notar, sem notar, uma expressão semelhante a tristeza ou cansaço no rosto do pai ou no rosto da mãe. Depois, brincadeira de novo. Música, flores, sorrisos. É tão bom ser pequenino…
Coisas pequenas. Diárias. Vulgares. Mas enormes, únicas, cheias de magia.
Durante muito tempo estive convencido de que era a infância que acendia nas pequenas coisas de todos os dias essa música e esse encanto que agora recordo. Que era por ser pequeno na altura que todas essas coisas são agora especiais. Mas há tantas pessoas que foram também pequenas e nunca poderão ter recordações destas… E não porque não tivessem tido pais, ou porque estes os tivessem maltratado ou porque tivessem sido demasiado pobres.
Geralmente não é muito difícil casar, ter filhos, uma casa para viver. Mas depois de se conseguir isso podemos chegar à conclusão de que é muitíssimo difícil construir uma família. É talvez como ter já os tijolos e, no entanto, sentirmo-nos incapazes de encontrar o cimento que os una, lhes dê forma, consistência e identidade.
É fundamental ter uma infância feliz… E começámos então a dar aos filhos coisas excelentes e atividades fantásticas e experiências divertidas. E enchemos de trabalho os dias, para lhes podermos dar tudo isso. Saímos, portanto, de casa. E a casa esvaziou-se.
E deixámos de viver com os filhos. As coisas fantásticas que lhes demos acabaram por ocupar quase todo o tempo em que deveríamos ter estado com eles.
É muito fácil errar o caminho.
Ao crescer, descobri que para se ter os lençóis lavados e passados a ferro é preciso frequentemente deitar-se mais tarde e dormir menos.
Aprendi que é preciso ter paciência para fazer uma criança ganhar o hábito de lavar os dentes ou deixar a roupa suja no local correto. E que a paciência dói.
Reparei em que as pessoas mais velhas gostam de sossego depois do jantar, porque se cansam facilmente. E que, por isso, tem um alto preço fazer nessa altura jogos com crianças ou correr atrás de pirilampos.
Vim assim a saber que o cimento da família é aquilo que se faz pelos outros, deixando de fazer aquilo de que se gosta, para os ver felizes, para os construir, para os ajudar a chegar onde devem chegar. Aquelas pequenas coisas da minha infância foram grandes, afinal, porque eram feitas de um amor sacrificado e escondido.

Esse amor toca naquilo que é pequeno e engrandece-o. Desenha flores no pó do quotidiano. Só ele permanece.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

A Orquestra


Gosto de ir ver a orquestra.
Vou ouvi-la, também, mas gosto mesmo é de a ver: enche-se-me a alma de uma outra forma; junto à beleza da música o encanto de ver o homem ser como deve ser.
Dominar um instrumento musical leva muito tempo. É preciso tornar os gestos sólidos e finos. Exige o aperfeiçoamento constante de qualquer coisa que nasceu connosco, deve desenvolver-se dentro de nós e brotar mais tarde, com naturalidade, como a água da fonte.
Assim solta a flor as suas pétalas: após um longo processo.
Gosto de ir ver a orquestra. Um homem cresce longamente por dentro de si, num tempo grande de isolamento, em esforço e privação, com o sol do outro lado da janela, e depois parece que isso não lhe serve para benefício próprio. Depois apaga-se, mergulha numa zona mais ou menos escura, ao lado de outros como ele. Depois não se torna conhecido, não gritam o seu nome, não se torna rico.
Passa despercebido.
O belo som que produz – que longamente aprendeu a produzir – é incapaz de se encher de sentido sozinho. Alguns instrumentos podem ser ouvidos, com agrado, sem acompanhamento; outros, nem por isso… Mas cada um deles só se torna verdadeiramente grande quando se apaga e se faz esquecer, passando oculto, como simples gota de água, no mar maravilhoso que é a sinfonia.
E há uma obediência maravilhosa. Um senhor de aspecto frágil, já com certa idade e ar de sábio, tem nas mãos uma batuta e dirige com gestos ligeiros todos aqueles sons e todas aquelas vontades individuais. O violinista não se liberta quando lhe apetece. E não pode brilhar: deve conter-se, prendendo-se aos seus tempos próprios e ao papel concreto que lhe corresponde.
Há muitos olhos atentos à mão que segura a batuta. Não se sentem constrangidos nem se revoltam. Procuram é a fidelidade ao seu pequeno papel, a melhor forma de passarem despercebidos: a perfeição pequena que é necessária à grande perfeição da sinfonia.
Obedecem porque querem. E eu gosto de ir ver a orquestra também porque compreendo de novo que é possível obedecer com liberdade, e que não é humano fazê-lo à maneira dos escravos: com raiva e de má vontade.
Há qualquer coisa extremamente desagradável na escravatura. Não só naquela que era imposta e existiu abundantemente em tempos antigos, mas nessa outra que muitas pessoas praticam quando são contrariadas – porque a vida não os pode satisfazer sempre – no caminho errado da sua pequena ambição individual.
O homem livre escolhe obedecer, para que possa existir a sinfonia. É nela que ele se torna grande. E ama o seu papel, indiferente ao brilho, maior ou menor, que lhe corresponda.
Não há nada maior para fazer do que a sinfonia. O homem deseja ser grande e tem os seus sonhos. Mas se aquilo que sonha for verdadeiramente grande, ele não poderá realizá-lo sozinho. Um homem por si só não é capaz de construir uma ponte, ou uma estrada, ou uma universidade. Ou a paz, ou uma família. Não educará os filhos. Não será sequer capaz de se construir a si próprio.

É perdendo-se na sinfonia que ele se encontra a si mesmo do tamanho que sonhou.

O Último Patamar


Todos nós já reparamos, com toda a certeza, nos ataques – violentos e constantes – que são feitos contra a instituição familiar nos tempos que correm.
A família apanha pancada a torto e a direito. Apeteceria ter pena dela, se fosse uma pessoa.
Basta passar os olhos num jornal ou numa revista, ligar a televisão, reparar nas propostas de lei que, insistentemente, sobem e voltam a subir – mesmo depois de anteriormente derrotadas – aos parlamentos dos vários países.
Tudo é útil.
Tudo aquilo que, de uma forma ou de outra, possa servir para corromper a família e contribuir  para a eliminar da face da terra é incrementado, com meios poderosíssimos, em nome de qualquer coisa mal explicada que pretendem vestir de modernidade.
E apresentam-nos, em alternativa à família, como sendo as últimas conquistas do progresso humano, coisas que não são senão roupagens que pretendem tornar apresentáveis as mais antigas podridões humanas.
Como se a família fosse algo que pertencesse a uma época da história que estamos prestes a ultrapassar. Como se ela se pudesse abandonar, para dar lugar a algo mais atual, da mesma forma que se abandonaram as máquinas de escrever à medida que se foram generalizando os computadores.
Vamos assistindo a esses ataques…
É a intenção clara de impor na sociedade o aborto. A coabitação. O “casamento” de homossexuais e a possibilidade de adoptarem crianças. A atividade sexual desregrada, arrancada ao âmbito que lhe é próprio.
São as leis que favorecem o divórcio, e a ausência de leis que defendam e promovam as famílias com filhos.
É a criação de um ambiente de comodidade material e de egoísmo – “Segurança!… Segurança!”… – no qual os filhos não têm lugar, porque nada se opõe tanto ao egoísmo e à comodidade como os filhos.
É a tentativa de fazer passar – como sendo um facto moderno e racional – a ideia de um “planeamento familiar” que, no fim de contas (não é tão fácil reparar na contradição?), consiste em aprender as técnicas de não construir uma família.
E a outra ideia, a de que as crianças – não passam, para eles, de brinquedos vivos… – existem para os pais, e não os pais para as crianças (é talvez por isso que se avança tanto na investigação em embriões, de forma a que, qualquer dia, se possa escolher o sexo, as características, os pormenores do aspecto físico dos filhos… assim como quem vai à loja escolher uma boneca).
São, ainda, muitas outras coisas. Tantas, que uma família normal, com muitos filhos, já é olhada como um bicho estranho quando  passa na rua (sucede como quando alguém passa conduzindo um daqueles carros de museu que funcionam a manivela…).
No entanto, apesar de todos os ataques, e dos rios de dinheiro – não podemos ser ingénuos – que organizações poderosas gastam neles, a família não deixará de existir como aquilo que é: um nó de laços indestrutíveis, fundamentado na união – assumida em forma de compromisso livre – de um homem com uma mulher para sempre.
E todas essas campanhas são uma batalha antecipadamente perdida. E todo esse dinheiro é inutilmente gasto.
É que a família pertence à natureza humana, e não está na mão de ninguém mudar isso. Não é um estágio da evolução da humanidade, uma fase que depois se ultrapassa para se chegar a um patamar superior.
A seguir à família não há mais nenhum patamar: só o abismo.
Se não houvesse a família, não haveria homens, mas sim monstros (às vezes encontramos por aí alguns que não chegaram bem a ter uma família, nem nada parecido, e aquilo que neles vemos faz-nos pensar precisamente nisto).
Não acontecerá, evidentemente, aquilo que vou imaginar a seguir.
Mas se alguém muito poderoso e sábio, num dia muito futuro em que isto estivesse tudo perdido – num dia em que as orientações que agora se tenta impor tivessem vingado e conduzido ao desconcerto e ao isolamento gerais – se esse alguém se pusesse a magicar numa forma de organizar a sociedade de maneira a reconstrui-la; se quisesse arquitetar um sistema de formar novos homens que possuíssem firme consistência; se procurasse uma maneira de os homens estarem ligados uns aos outros por laços inquebráveis que os acompanhassem ao longo de toda a existência; se pretendesse que os homens nunca mais estivessem sozinhos; se desejasse inventar um caminho que de novo conduzisse à felicidade…
Então esse alguém, se fosse capaz, começaria por formar pequenas células, sãs e inquebráveis, que, depois de se juntarem a outras, viessem a constituir o tecido da sociedade dos homens.
Esse alguém, se fosse capaz, inventaria… a família!

Nós, que ainda a temos, devemos prezá-la como se preza um tesouro.

domingo, 24 de abril de 2016

Pensamentos


Pensamentos que me afligem
Sentimentos que me dizem
Dos motivos escondidos
Na razão de estar aqui
As perguntas que me faço
São levadas ao espaço
E de lá eu tenho todas
As respostas que eu pedi

Quem me dera que as pessoas que se encontram
Se abraçassem como velhos conhecidos
Descobrissem que se amam
E se unissem na verdade dos amigos

E no topo do universo uma bandeira
Estaria no infinito iluminada
Pela força desse amor, luz verdadeira
Dessa paz tão desejada

Pensamentos que me afligem
Sentimentos que me dizem
Dos motivos escondidos
Na razão de estar aqui

E eu penso nas razões da existência
Contemplando a natureza nesse mundo
Onde às vezes aparentes coincidências
Têm motivos mais profundos

Se as cores se misturam pelos campos
É que flores diferentes vivem juntas
E a voz dos ventos na canção de Deus
Responde todas as perguntas