Senso Crítico

Senso Crítico

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Simples Fatos


É tão difícil calar quando se tem que calar, 
e falar quando se tem que falar. 
Abrir e soltar; 
Falar e pensar. 
Cantar e sonhar, 
Parar e tocar.
                                Por pra fora sentimentos contidos 
                                Expressar momentos vividos, 
                                Cogitar idéias, 
                                Trocar matérias, 
                                Reviver momentos profundos 
                                Impedir ou pedir pra que parem o mundo.
Retomar o rumo, 
Reerguer os muros, 
Gritar alto, 
Correr, pular 
Respirar fundo 
Voar, andar. 
Ver a vida passar 
Esquecer, relembrar. 
Não olhar para trás, 
Jamais.
                                Aprender com os erros 
                                Sempre.
Reclamar, rejeitar 
Renegar, ressurgir. 
Esses relatos 
São simples fatos, 
Fatos contados, fatos vividos, 
Fatos mudados, fatos lembrados 
Isso nos mostra que 
a vida é feita de 
Simples fatos.
                                Porém, não tão simples quanto aparentam ser. 

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Girassol


Em minha mão fechada cabe o dia, 
o fogo aleatório dos instantes 
e o silêncio que espalham os amantes 
quando termina a festa e nada resta
da luz petrificada entre as montanhas. 
Em minha mão aberta cabe a sombra 
largada pela vida que me espera 
além do inverno, quando a primavera
devolve ao caule a rosa fenecida 
e o que foi volta a ser, e toda perda 
retorna como um lucro imerecido.
A minha mão sustenta um girassol. 
Sou sobra e o excesso, como o vento 
ou como a luz incômoda do sol.

Cansa sentir quando se pensa


Cansa sentir quando se pensa. 
No ar da noite a madrugar 
Há uma solidão imensa  
Que tem por corpo o frio do ar. 
Neste momento insone e triste 
Em que não sei quem hei de ser, 
Pesa-me o informe real que existe 
Na noite antes de amanhecer.
Tudo isso me parece tudo
E é uma noite a ter  um fim 
Um negro astral silêncio surdo 
E não poder viver assim.

(Tudo isso me parece tudo
Mas noite, frio, negror sem fim, 
Mundo mudo, silêncio mudo – 
Ah, nada é isto, nada é assim!)



Antes que eles creçam


Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos seus próprios filhos.
É que as crianças crescem independentes  de nós, como árvores tagarelas e pássaros estabanados.
Crescem sem pedir licença à vida.
Crescem com uma estridência alegre, e, às vezes, com alardeada arrogância.
Mas não crescem todos os dias de igual maneira. Crescem de repente.
Um dia sentam-se perto de você no terraço e dizem uma frase com tal maturidade que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura.
Onde é que andou crescendo aquela danadinha que você não percebeu?
Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços
e o primeiro uniforme do maternal? A criança está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil…E você está agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não apenas cresça, mas apareça!
Ali estão muitos pais ao volante, esperando que eles saiam esfuziantes
sobre patins e cabelos longos, soltos. Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão nossos filhos com o uniforme de sua geração: incômodas mochilas da moda nos ombros. Ali estamos, com os cabelos esbranquiçados.
Esses são os filhos que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas, das notícias e da ditadura das horas. E eles crescem meio amestrados, observando e aprendendo com nossos acertos e erros.
Principalmente com os erros que esperamos que não repitam.
Há um período em que os pais vão ficando um pouco órfãos dos próprios filhos.
Não mais os pegaremos nas portas das discotecas e das festas. Passou o tempo do ballet, do inglês, da natação e do judô. Saíram do banco de trás e passaram para o volante de suas próprias vidas. Deveríamos ter ido mais à cama deles ao anoitecer para ouvir sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de adesivos, pôsteres, agendas coloridas e discos  ensurdecedores.
Não os levamos suficientemente ao Playcenter, ao Shopping, não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas que  gostaríamos de ter comprado.
Eles cresceram sem que esgotássemos neles todo o nosso afeto. No princípio subiam a serra ou iam à casa de praia entre embrulhos, bolachas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscina e  amiguinhos.
Sim, havia as brigas dentro do carro, a disputa pela  janela, os pedidos de chicletes e cantorias sem fim.
Depois chegou o tempo  em que viajar com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível deixar a turma e os primeiros namorados.
Os pais ficaram exilados dos filhos. Tinham a solidão que sempre desejaram, mas, de repente, morriam de saudades daquelas "pestes".
Chega o momento em que só nos resta ficar de longe torcendo e rezando muito
(nessa hora, se a gente  tinha desaprendido, reaprende a rezar) para que eles acertem nas escolhas em busca de felicidade. E que a conquistem do modo mais completo possível.
O jeito é esperar: qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco.
Por  isso os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável carinho.
Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto.
Por isso é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que eles cresçam.

Poesia matemática


Às folhas tantas
Do livro matemático
Um Quociente apaixonou-se
Um dia
Doidamente
Por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
E viu-a, do Ápice à Base.
Uma Figura Ímpar;
Olhos rombóides, boca trapezóide,
Corpo otogonal, seios esferóides.
Fez da sua
Uma vida
Paralela a dela
Até que se encontraram
No Infinito.
"Quem és tu?",indagou ele
Com ânsia radical.
"Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
-O que, em aritmética, corresponde
A almas irmãs -
Primos-entre-si.
E assim se amaram
Ao quadrado da velocidade da luz
Numa sexta potenciação
Traçando
Ao sabor do momento
E da paixão
Retas, curvas, círculos e linhas sinoidais,
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclideanas
E os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E, enfim, resolveram se casar
Constituir um lar,
Uma perpendicular.
Convidaram para padrinhos
O Poliedro e a Bissetriz
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
Sonhando com uma felicidade
Integral
E diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
muito engraçadinhos.
E foram felizes
Até aquele dia
Em que tudo, afinal,
Vira monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
Frequentador de Círculos Concêntricos.
Viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
Uma Grandeza Absoluta,
E reduziu-a a um Denominador Comum.
Ele, Quociente, percebeu
Que com ela não formava mais Um Todo,
Uma Unidade. Era o Triângulo,
Tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era a fração
Mais Ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
E tudo que era espúrio passou a ser
Moralidade
Como, aliás, em qualquer
Sociedade.

Chapeuzinho Vermelho e lições políticas


 A estória de Chapeuzinho Vermelho nos ensina preciosas lições  políticas. Caminhando pela floresta Chapeuzinho, tão bobinha, acredita na fala do lobo, escondido no meio das árvores. Assim é o povão: acredita em qualquer coisa. Se duvidam sugiro que gastem um pouco do seu tempo olhando os programas religiosos na TV. Esses programas poderiam ser usados para avaliar o grau de inteligência e educação da população. É assombroso aquilo em que se pode acreditar!  Acredita-se em tudo, desde que um milagre seja prometido. Muito mais espertos que o lobo de antigamente, os lobos de agora valem-se da mais moderna tecnologia. Contratam “produtores de imagens…” O que é um “produtor de imagem”? É um profissional de estética que faz operações plásticas na imagem do candidato de forma que ele deixe de ser o que era, naturalmente, e fique parecido com a imagem que o povo deseja. Pois o lobo, já com a vovozinha dentro da barriga – ( Voz gutural: “Que grande goela a minha! Engoli a velha interinha!” ) - “fantasiou-se” de vovozinha. “Toc, toc, toc…”, Chapauzinho bateu à porta. “- Quem bate sem ordem minha?” – pergunta o lobo com voz grossa. -“Sou eu, Chapeuzinho…” O produtor de imagem que se escondia atrás da cabeceira da cama lhe disse logo: “Mude a voz, mude a voz…” E sua voz gutural se transforma na trêmula voz de uma velhinha indefesa: “ – Pode entrar, minha netinha…” Chapeuzinho conhecia a vovó muito bem.
Aproxima-se  da cama e, pasmem! – não percebe a diferença. As orelhas, os olhos, o focinho, os dentes, os pelos na pata, os extratos bancários na Suíça, os antecedentes de corrupção, tudo dizia: “Fuja! Não é a vovozinha!  É o lobo!” Mas Chapeuzinho era muito burra, muito burrinha mesmo. Como o povão que vê televisão, ela acreditava na “imagem”. Na estória os caçadores salvam a tonta. Mas acho que não merecia ser salva. O lobo era mais inteligente que ela. A burrice não merece ser salva. Essa estória dá duas lições negativas às crianças. A primeira é que nem sempre é sábio fazer o que a mãe manda. Uma mãe que manda uma filha por  uma floresta  onde havia um lobo só pode ser louca. Maternidade não é garantia de sanidade. A segunda é uma lição mentirosa: que não importa ser burro porque os caçadores aparecem no fim para consertar o estrago. Na vida real o fim é outro. O lobo, juntamente com os caçadores e os produtores de imagem comem Chapeuzinho Vermelho, como atestam esses anos de “democracia” no Brasil. Política não se faz com a verdade. Se faz com aparências, máscaras, imagens. Maquiavel já sabia disso e advertiu o Príncipe de que  “o que importa não é ser  virtuoso. O que importa é parecer ser virtuoso.”  É o “parecer ser “ que produz votos. Todo o processo democrático é construído sobre ilusões óticas. Há salões de beleza para as mulheres que querem ficar bonitas. E há salões de beleza para os políticos que querem ficar bonitos. Sugiro que as empresas dos produtores de imagens de políticos passem a ser chamadas pelo nome correto: “Salões de beleza para políticos”. Salão de beleza “Entra Fera e sai Bela”! 
Por que enormes transformações não passou o Lula! Passou a se  vestir de acordo com os padrões estéticos da elegância, Paris, e não segundo os padrões estéticos dos torneiros mecânicos. Ninguém se elege só com voto de torneiro mecânico. Essa mudança foi importante porque o pessoal da “prateleira de cima”, como diziam minhas tias, aprecia um homem bem vestido, especialmente em se tratando de futuro presidente. Consertou e embranqueceu os dentes. Seu sorriso provoca agora reflexos branco total radiante.  Parou de falar “menas”. Só não conseguiu aveludar a voz, que continua um pouco gutural. Mas está bem assim. É bom não exagerar na plástica. Não me entendam mal. Não estou criticando o Lula. Essa é uma das regras do jogo político democrático: é a tolice dos eleitores que elege presidentes Até o presidente Jimmy Carter teve de passar por uns  “retoques” para consertar algo no seu sorriso que não estava ao gosto do povo americano. O povo não vota pela razão. A esquerda custou a aprender a lição. Pensava que os eleitores queriam saber os fatos, a verdade. E por eleições sucessivas bombardeou os eleitores com informações verdadeiras.
Nisso a esquerda concordou com o Antônio Ermírio, quando ele se candidatou  à prefeitura de São Paulo. Lembro-me dele, na TV, paletó mal ajambrado (não se valeu dos conselhos de um “produtor de imagens”), ao lado de um quadro negro, dando uma “aula” de economia para os eleitores, como se estivesse falando aos acionistas das suas empresas! Quem trata o povo como se ele fosse inteligente perde. O povo não vota com a cabeça. Ele vota com os olhos, “vendo figuras” -  como fazem as crianças. Qual é a figura mais bonita? Assim o Collor foi eleito. Acho que se a Xuxa se candidatasse seria eleita. Tudo é um grande baile de máscaras e é preciso votar na fantasia mais bonita. Qual é a imagem do Bush? Texano, na tradição dos cowboys que, sozinhos, matam os bandidos, a imagem de Bush fica ao lado de John Wayne, homem mais macho que ele nunca houve… O povo americano não vota pela razão. Vota pelas imagens dos bang-bangs. São dois times: Os mocinhos e os bandidos. Nós somos os mocinhos….
O destino da democracia se decide no momento da sua fundação. Se os lobos são eleitos para estabelecer as regras do jogo será inútil que as ovelhas que os elegeram berrem depois ao serem transformadas em churrasco. Pois está escrito na lei: “É direito dos lobos comer ovelhas”. Os lobos democraticamente eleitos pelas ovelhas escreveram…  Não existe caso em que os lobos tenham, democraticamente, aberto mão dos direitos que eles mesmos estabeleceram. As ovelhas são as culpadas de sua desgraça. Foram elas que, pelo voto, deram poder aos lobos. 
Uma amiga perspicaz sugeriu-me que a eleição deveria ser feita à imitação do Big Brother. O Big Brother pelo menos muita gente vê – o que não acontece com a propaganda política. Os candidatos seriam colocados numa casa por um mês, sem poder sair, todo mundo poderia vê-los o tempo todo, e iriam sendo eliminados por votos do público telespectador. Pelo menos seria divertido. Um amigo que sofre de insônia acorda de madrugada e liga a TV num programa evangélico na esperança que haja algum milagre para fazer dormir…
Contou-me que num desses programas vários pastores se reuniram em torno de uma enorme taça de vidro, cheia de um óleo sagrado, vindo não sei de que montanha no oriente onde a burra de Balaão pastou. A seguir tomaram um pó dourado nas mãos – diziam que era pó de ouro, eu acho que era purpurina – e o jogaram dentro do óleo. Vinham os fiéis então, em fila, para mergulhar o dedo no óleo dourado e esfregar na testa, para ficarem ricos. Que coisa
maravilhosa! É preciso democratizar essa bênção para que todos os pobres fiquem ricos, resolvendo-se assim o problema da pobreza e da fome no  Brasil. Essa é uma pequena amostra da capacidade do povo em acreditar em qualquer besteira, desde que prometa milagre.
Nas Minas Gerais dos tempos dos meus pais e avós os partidos políticos não eram conhecidos por ideologias e programas. Partidos eram como times de futebol, cada um com a sua torcida. Ninguém torce por um time por razões de inteligência. Torce porque torce, sem razões. Acho que em Boa  Esperança, onde nasci, os dois partidos eram os “Gaviões” e as “Rolinhas”. Imagino que essa escolha de nomes não era acidental. Os Gaviões eram os que comiam as Rolinhas. Já em Lavras os dois partidos eram os “Ratos” e os “Queijos”… Os roedores e os roídos. Ah! Naqueles tempos as coisas eram mais claras. Entre nós acho que eventualmente os nomes dos partidos poderão ser substituídos por nomes de times de futebol. Aí os votos serão dados por cores de time e lealdade de torcidas. A psicologia da torcida de futebol muito se assemelha à psicologia das eleições. Carreatas, foguetórios, churrascos… Parece que esse processo já está a caminho. Um candidato a vereador se anuncia: “Bola pra frente…” O bom de substituir os partidos políticos por times de futebol é que, assim, eliminam-se as questões éticas.  No futebol não há ética. Se o juiz apita um pênalti que não existiu a favor do meu time, nenhum jogador do meu time é besta de dizer ao juiz que o pênalti não existiu… Vale para o futebol e para a política a “Lei do Gerson”: “o que importa é levar vantagem”…
 (Rubem Alves)