Senso Crítico

Senso Crítico

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

O Rebanho



É certo que nós, os homens, nos temos animalizado.
Tornaram-se mais raros os comportamentos humanos: quero dizer comportamentos ditados pela inteligência e pela vontade; pela parte espiritual – a mais elevada – do nosso ser.
Procuramos encher a barriga, buscamos o divertimento, a comodidade, o prazer, aquilo que é fácil. Não nos interessam os sábios, os filósofos, os poetas, os santos. Não queremos ouvir falar de subir montanhas – interiores ou exteriores a nós -, de superação, de ousadia, de sacrifício. Aventuras… só aquelas que não tiverem necessariamente consequências, as que não comportarem um risco real – o que impede que sejam realmente aventuras…
Somos, cada vez mais, um pedaço de carne mole estendida à sombra. Olhamos, na rua, para uma multidão e cada vez temos mais a sensação de que não se diferencia muito de um rebanho, de que constitui uma massa amorfa sem individualidades.
E, no entanto, esse rebanho segue um caminho; obedece a indicações precisas, aceites por todos. Mesmo as coisas mais disparatadamente contrárias à nossa natureza, ao nosso bem, à nossa felicidade, são pacificamente aceites por todos.
Há alguém – há interesses – por trás da forma como, por exemplo, são orientados muitos meios de comunicação. Estes nossos tempos têm os seus “profetas” escondidos, que erguem o dedo e apontam caminhos que quase todos seguem docilmente, como ovelhas tontas a quem basta a sua dose diária de erva verde, de sombra e de descanso.
Transformar uma multidão de seres inteligentes em rebanho foi – está a ser – uma gigantesca tarefa, reveladora de grande inteligência. E , também, de muito desprezo pelos outros seres humanos.
Qual foi a tática? Foi, sem dúvida, complexa. Mas o seu elemento mais decisivo consistiu em fazer crer às pessoas que se estava a defender os seus interesses, os seus direitos e a sua liberdade. Como se esses “profetas” se preocupassem generosamente com os interesses das outras pessoas… Como se alguém tivesse visto essa gente a fazer voluntariado em hospitais ou a distribuir os seus bens aos mais pobres…
Esta linguagem – “os vossos direitos, a vossa liberdade”… – soa bem aos ouvidos de qualquer um… É atrativa, quase irresistível. Com ela conseguiram mudar a mentalidade de muitos e alterar o tom da sociedade.
Quando lhes interessou que diminuísse o número de nascimentos de crianças, procuraram que as mulheres passassem a estar fora do lar (“A condição e a utilização das mulheres nas sociedades dos países subdesenvolvidos são particularmente importantes na redução do tamanho da família… As pesquisas mostram que a redução da fertilidade está relacionada com o trabalho da mulher fora do lar”, lê-se no tenebroso Relatório Kissinger, pag. 151). Para isso, não fizeram leis que obrigassem a mulher a trabalhar longe de casa, porque isso apareceria claramente como um abuso e uma ingerência e se estava numa altura em que o mundo não admitiria novas tiranias. O que fizeram foi divulgar a ideia de que a mulher tinha tanto direito como o homem a trabalhar fora do lar. E as mulheres empertigaram-se… e a mensagem passou.
E não quiseram, pelo mesmo motivo, obrigar a mulher a abortar. Disseram-lhe que tinha o direito de “interromper a gravidez” porque a gravidez era um assunto apenas dela.
E não disseram aos casais que tivessem poucos filhos. Mostraram-lhes, simplesmente, como era bom consumir; que tinham tanto direito como os outros à qualidade de vida (ter muitas coisas…). Apenas lhes fizeram notar que com cada filho se gasta uma fortuna… e que cada filho que viessem a ter teria também o seu direito à qualidade de vida.
E, no início, não divulgaram diretamente o homossexualismo. Falaram às pessoas de liberdade sexual, da livre escolha de cada um nesse campo.
E não impediram os pais de educar os filhos. Falaram do direito à educação, concretizando-o em leis – obrigatórias!… – que encaixotam as crianças, desde tenra idade, em escolas que não são exatamente centros educativos. Nesses lugares – longe da vista dos pais – ensinam atualmente os jovens a terem relações pré-matrimoniais “seguras”. E a bondade da “opção homossexual”. E outras coisas do género.  É nisto – unicamente nisto – que consiste aquilo a que pomposamente chamam “educação sexual”.

Tudo aquilo que, ao longo da história, muitos tiranos tentaram, sem grande sucesso, realizar através da força – seleção de raça, super-homem, eliminação dos deficientes e dos velhos e dos inúteis, homem-ovelha facilmente conduzido – está agora a ser conseguido sem grandes ondas…

sábado, 31 de outubro de 2015

Ponto de Passagem


As mulheres têm coisas que irritam um homem até mais não poder. Possuem uma sensibilidade exagerada, que as leva a amuar por tudo e por nada; tendem a dizer as coisas apenas por meias palavras; são vingativas; fartam-se de gastar dinheiro em roupa; ligam imenso ao que as outras dizem; insistem constantemente em miudezas que mais ninguém consegue ver; se as deixarem, falam durante horas seguidas de coisas desinteressantes.
Os homens, por seu lado, levam qualquer mulher ao desespero. Comportam-se, irresponsavelmente, como crianças grandes; não reparam nas coisas mais óbvias; são desleixados no vestir, na limpeza, na arrumação; ligam mais ao trabalho e aos amigos do que ao que se passa em casa; preferem o futebol da televisão aos filhos e à mulher.
É, portanto, irracional que o homem e a mulher se juntem um ao outro e constituam uma família. É por isso que se torna necessário que a natureza – para os enganar – arranje uma temporada de cegueira mental, a que se chama paixão, e os atraia através de um instinto puramente animal.
Fora dessa temporada, as coisas estão no seu devido lugar: durante a infância, os rapazes preferem conviver com rapazes e as raparigas com raparigas; depois de passar a paixão, há aqueles conflitos que todos conhecemos e os arrependimentos tardios de quem se deixou cair na armadilha…
Mas não! As coisas não são bem assim.
Acontece que estes raciocínios assim tão redondinhos estão muitas vezes longe de serem verdadeiros, e não expressam com exatidão a realidade das coisas.
A natureza não nos enganou.
Uma das coisas mais maravilhosas que ela nos oferece é, sem dúvida, a forma harmoniosa de o homem e a mulher se completarem. Em geral, que seria de um homem sem uma mulher? E o que seria de uma mulher sem um homem? Não passariam de seres incompletos, qualquer coisa como uma faca que não tivesse lâmina, ou que não tivesse cabo.
A paixão é uma coisa maravilhosa, que leva uma mulher e um homem a unirem as suas vidas no objetivo comum de fundarem uma família e educarem os filhos. É, porém, necessário que a paixão, para ter sentido, se torne fecunda. Ela não deve nunca ser considerada um fim em si mesma, porque, pela sua própria natureza, não pode ser senão um ponto de passagem.
Mas hoje os casais não têm filhos, ou têm poucos filhos, ou não se empenham – pai e mãe – na educação dos filhos como grande objetivo da sua união.
E, então, já não há quase nada que os una. A paixão, ao inevitavelmente passar, deu lugar a… nada. A um aborrecimento vivido em comum. A um vazio no qual não têm ponta de sentido as qualidades femininas e as qualidades masculinas, por falta do objeto a que deviam aplicar-se.
Só têm então relevo os defeitos, ou as qualidades que, carecendo de objeto, se desvirtuaram e se tornaram maçadoras.

A natureza não errou. Nós é que saltámos para fora dos seus planos. Nada que, em grande parte dos casos, não tenha emenda.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

O Mundo Esta Salvo


Recomeçaram as aulas. É tempo de retomar gestos familiares, em desuso durante umas semanas. Tempo de estar de novo à frente de um grupo desconhecido de alunos que esperam que lhes diga alguma coisa. Digo o meu nome e nunca sei muito bem o que devo dizer a seguir, mas as coisas acabam sempre por se comporem. Quando penso no que devo dizer, nunca digo aquilo que pensei previamente. E já me deixei disso.
Felizmente, daqui a poucos dias já nos conheceremos perfeitamente. Nunca precisamos de muito tempo para nos conhecermos bem… O que não for dito agora virá mais tarde e permanecerá. Saberão – não é preciso que lhes diga agora – que farei com que se cansem. Saberão que para chegar ao poema é preciso exercitar antes a sintaxe e outras coisas aborrecidas. Hão de queixar-se, mas eu terei vontade de rir quando vierem a descobrir, surpreendidos, que são capazes do poema. Só lá para o 3º Período… Antes disso, terão de escrever e apagar, escrever de novo, ouvir uma reprimenda, levar um recado para os pais…
Recomeçaram as aulas. Há exatamente um ano eu era um ano mais novo. Depois disso passaram 365 dias em que me encantei e me desencantei; em que me cansei; em que aprendi o que gostaria de não ter aprendido; em que descobri mais coisas que já não sou capaz de fazer. Envelheci. Mas os meus alunos, cujos rostos ainda não sei associar aos nomes, têm os mesmos 13 anos de há um ano atrás. É, de certa forma, estranho… O tempo passou por mim, mas não por aqueles que se encontram agora sentados à minha frente.
É sempre assim. E, sempre que é tempo de suceder isto, eu sei que o mundo está salvo. Enquanto houver jovens de 13 anos, o mundo está salvo.
Porque as minhas alunas adoram crianças – quase todas desejam ter, no futuro, profissões como educadora de infância ou médica pediatra. Porque gostam imenso de animais e gostariam muito de praticar equitação, se isso aqui fosse possível. Porque têm uma letra bonita e põem a língua de fora enquanto escrevem a composição que lhes mandei fazer.
Porque os meus alunos são saudavelmente tontos, como é próprio desta idade, mas têm neles um espaço para o sonho e para uma ambição que não fechou ainda as portas à nobreza. Porque têm um dinamismo enorme e não conseguem estar quietos durante muito tempo. Escrevem, no papel que lhes entreguei, que tencionam tirar um curso superior, mas ainda não sabem qual… e isso é delicioso.
Porque sabem dizer os seus defeitos e as suas qualidades com uma clareza notável, e ainda não aprenderam muito bem a ocultar, a torcer, a disfarçar.
Porque há ali vidas abertas a aprender, a ser mais, a ser melhor.
Recomeçaram as aulas. E em cada um dos alunos deste grupo – no meio do qual não me sinto perdido porque… afinal há muitos anos que os conheço – há um sorriso, uma promessa e um mistério.

E encho-me de esperança, porque é possível que não reparem muito em nós e no nosso mau exemplo. Porque pode acontecer que se cansem da podridão que lhes servimos na televisão e se dediquem a ter amigos, a ouvir música, a ler, a pintar, a escrever, a disparates sadios. Porque talvez muitos deles encontrem ao longo dos próximos anos uma orientação para a sua força, um norte para a sua ambição, um ombro para os seus desânimos: alguém sem medo de lhes dizer a verdade sobre a vida, o amor, o sofrimento e a morte.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O Zé


Em casa, o Dr. José Gonçalves é o Zé.
Ali, longe das câmaras da televisão, das reuniões do conselho de administração, dos jornalistas, do patrão, dos empregados, dos clientes, dos alunos, dos doentes, dos colegas… é somente o Zé.
Calça os chinelos, faz gestos prosaicos, resmunga, ri à vontade, permite-se caprichos, cantarola na ducha.
Conhecem-lhe as manias e os gostos; sabem como comportar-se quando está mal disposto, o que dizer para o convencer, que coisas o entusiasmam. É lá que realmente festeja o aniversário, é lá que lhe dão o prato preferido nos dias especiais. E sabem quais são os dias especiais. Em casa, o tempo tem assim cantinhos aconchegados como os tem o espaço. E há ritos velhinhos, cheios de sentido.
Em casa está tudo cheio de sentido.
Em casa pode errar. Em casa compreendem-no. Em casa ouvem aquilo que tem para dizer com verdadeira vontade de o escutar e de sentirem verdadeiramente as mesmas coisas que ele sente. Em casa dão tudo por um sorriso nos lábios dele.
Em casa têm uma paciência infinita. E sabem – pela forma como enfia a chave na fechadura, por uma certa expressão quase insensível do rosto – que aquele dia não correu lá muito bem.
Esperam um pouco – fingindo que não repararam em nada… – mas não tardam a contar-lhe coisas agradáveis, a pôr uma música que ele aprecia, a recordar episódios fantásticos que viveram juntos, a trazer umas fotografias antigas cheias de sabor, a lembrar-lhe que no Domingo há o Porto-Sporting… Até que ele dê a devida – a pequena – importância àquilo que o preocupava.
E, se o assunto for ainda mais sério, é certo que alguém, lá mais para o sossego da noite, se senta a sós junto dele e lhe diz baixinho: “conta lá…”.
O Zé termina sempre comovido os seus dias maus. Apetece-lhe agradecer e, às vezes, chorar.
Lá fora, o Dr. José Gonçalves é valorizado de acordo com aquilo que produz, de acordo com a sua maneira de funcionar. Pode descer ou subir na hierarquia da empresa, pode ser despedido ou promovido, ter um vencimento maior ou menor. Em casa, gostam do Zé assim como ele é. A família é o único lugar onde gostam do Zé por ele ser quem é: o filho, o marido, o pai, o irmão; aquela pessoa, com tudo o que faz parte dela, independentemente das suas qualidades e dos seus defeitos e daquilo que possa produzir.
Na família, aquilo que os une está num plano imensamente superior a tudo aquilo que os possa afastar. Muito acima das discórdias, das zangas, dos amuos, dos diferentes pontos de vista. Podem as ondas enfurecidas de um mar de inverno salpicar as estrelas? Alguém ligou aquelas vidas com um nó, e a vida de um é a vida dos outros. E o sorriso de um é a alegria dos outros. E a dor de um é a dor dos outros.
Mas o homem de hoje tem vindo a destruir – com uma frequência enorme e inexplicável – a sua família…

E, ao fazer isso, suicida-se de algum modo. Aniquila a sua personalidade, exila-se da pátria, abdica do seu reino. Transforma a sua pessoa numa coisa, pois passará a viver apenas nos ambientes em que é valorizado somente por aquilo que produz. Deixa de ser uma pessoa para passar a ser um funcionário…

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

A Vida é Bela


Todos os homens podem, e devem, em qualquer circunstância, considerar que a vida é bela e viver de acordo com isso. Ninguém tem motivos para a considerar desprovida de nobreza e grandiosidade. A dor e as contrariedades sempre fizeram parte da vida dos homens, e nem por isso eles deixaram de a amar.
Mas acontece que nesta vida se sofre realmente, e que – ao contrário do que antigamente sucedia – aqueles que sofrem são agora muitas vezes abandonados pelos outros, e têm de viver sozinhos com a sua dor. À qual se acrescenta, então, a dor enorme da solidão.
Sempre houve doentes e anciãos, mas antigamente eram considerados um tesouro. Agora não passam de um estorvo… E é só por isso que hoje se fala em eutanásia, quando no passado havia apenas o suicídio: o suicídio é uma decisão pessoal; a eutanásia acabará por ser uma imposição da sociedade.
Há em muitas cabeças uma noção da vida que é chocantemente pobre, desagradavelmente rasteira, tristemente vazia. Consiste em olhar para a vida de uma forma utilitária, com base numa concepção egoísta e em critérios apenas econômicos: se uma vida não é útil – se não é produtiva, se não proporciona todo o prazer – então não tem razão de ser. Pode eliminar-se, como se elimina um automóvel velho ou sem conserto, um par de sapatos rotos, uma camisola demasiadas vezes remendada.
E nem sequer é nas pessoas muito doentes, ou nos idosos que estão perto da morte, que essa mentalidade é frequente. Não. É nos outros, nos que estão convencidos de que ainda vão ficar aqui muito tempo e se acham no direito de construir uma sociedade com regras que lhes parecem mais perfeitas do que as da natureza, livres de quaisquer critérios e valores que não sejam os econômicos e os do bem estar.
A grande questão da eutanásia não consiste em se cada pessoa pode, ou não, ter a liberdade de escolher o seu destino. E também não reside em se uma pessoa pode pedir a outra que a mate.
É ainda pior do que isso: a questão está em que o triunfo desta visão utilitária da vida levaria – como, de resto, já está a suceder na Holanda – à eliminação de pessoas que, não querendo elas mesmas acabar com a vida, são consideradas inúteis por uma sociedade que se tornou materialista (a decisão é transferida para os médicos e para os familiares, e para os parlamentos, que muitas vezes estão ansiosos por se verem livres de um fardo).
Assim é que desaparece realmente a liberdade de escolher o próprio destino, e as pessoas se tornam em objetos à mercê dos interesses econômicos e dos falsos critérios de utilidade social.
É muito fácil aproveitar-se da extrema debilidade – física e emocional – de um doente terminal. Até para o convencer das presumíveis vantagens de uma “morte doce”. Muito mais fácil do que proporcionar-lhe todo o apoio e carinho de que necessita para levar a vida até ao fim – sem desistir – e morrer com verdadeira dignidade.

A dor é também uma falsa questão. A medicina sabe tirar a dor, e o resto… aguenta-se. O pior é a solidão e o abandono. Isso é que é difícil de suportar. E tem uma solução bem simples… Bastaria que todos os que estão à volta do doente olhassem para aquela vida – para a vida – sem egoísmo.

Porque


Já tinhas dito que sentias a morte perto. Tremia-te a voz e tremiam-te as mãos e tinhas o corpo cheio de dores. Depois, enquanto a tua imagem diminuía e se apagava diante do nosso olhar, crescias ainda mais nos nossos corações.
Em ires até ao fim houve uma forma de nos gritares aquilo que a tua voz já não era capaz de dizer.
Já de muitas maneiras te tínhamos agradecido, mas é conveniente dizer-te de novo um obrigado imenso.
Porque só tu nos disseste a verdade.
Os outros disseram-nos aquilo que queríamos ouvir e aquilo que nos agradava – pois queriam ganhar adeptos e lucrar com isso – mas tu, como amigo sincero, não tiveste receio de usar as palavras verdadeiras. Ainda que fossem duras, ainda que corresses o risco de ficar sozinho.
Porque, se o caminho real era empinado e agreste, não nos indicaste outro mais à medida da nossa preguiça, da nossa avareza, da nossa luxúria. Não quiseste enganar-nos. Disseste-nos como podíamos encontrar-nos conosco mesmos e confiaste em que seríamos capazes de ser fortes.
Porque os outros quiseram enriquecer à custa de ficarmos desnorteados, e tu quiseste tornar-nos ricos gastando o teu sangue e a tua vida.
Porque o teu dia começava cedo e acabava tarde. Porque tinhas, com tanta idade, a agenda tão cheia. Rezavas e trabalhavas, mas ao rezares trabalhavas e ao trabalhares rezavas. Ninguém sabe dizer quando é que descansavas.
Porque foi sempre para ti que olhámos em primeiro lugar, quando os poderosos preparavam novas guerras nos lugares onde há petróleo, quando o ódio derrubava edifícios, quando chegavam notícias de novos “avanços” científicos que pareciam fantásticos, mas nos cheiravam a esturro.
Porque os teus olhos eram limpos e o teu sorriso era bom e o teu coração bateu sempre ao lado do nosso.
Porque eras um dos nossos nas tuas vestes brancas. Porque envelheceste cuidando de nós. Porque foste baleado por dizeres a verdade. Porque não andavas mascarado, como os outros.
Porque não ficaste no teu palácio de Roma, mas vieste ter conosco até aos cantos mais pequenos do mundo e quiseste aprender conosco e sentir os nossos entusiasmos nobres. Porque quiseste falar-nos nas nossas línguas.
Porque quando te apresentámos as nossas crianças tu as beijaste e abençoaste sem fingimento, como quem faz uma coisa muito, muito importante.
Porque quando olhavas para nós vias uma bondade e uma força e uma beleza em que já não acreditávamos.
Porque o pequeno e o grande tinham um lugar do mesmo tamanho no teu coração. Porque não te preocupaste apenas com os que te eram próximos no pensamento, mas resolveste carregar sobre os teus ombros as dores, as preocupações, os lutos e as lágrimas de todos os homens de todas as religiões.
Porque guardavas no teu coração as nossas dores e sofrias com elas e nós somos muitos. Porque de tanto te abraçares ao teu Cristo crucificado te tornaste tão humano. Porque também escreveste as tuas poesias.

Porque salvaste tantas vidas. Porque trabalhaste pela paz. Porque chegaste ao fim de um caminho tão longo cheio da juventude do amor. Porque morreste repleto de obras e de sonhos, olhando para as tuas mãos, tão cheias, com a impressão de as veres vazias.

domingo, 9 de agosto de 2015

Meu Querido, meu velho, meu amigo


Esses seus cabelos brancos, bonitos
Esse olhar cansado, profundo
Me dizendo coisas, um grito
Me ensinando tanto, do mundo...
E esses passos lentos, de agora
Caminhando sempre comigo
Já correram tanto na vida
Meu querido, meu velho, meu amigo

Sua vida cheia de histórias
E essas rugas marcadas pelo tempo
Lembranças de antigas vitórias 
Ou lágrimas choradas ao vento
Sua voz macia me acalma 
E me diz muito mais do que eu digo
Me calando fundo na alma
Meu querido, meu velho, meu amigo

Seu passado vive presente
Nas experiências contidas
Nesse coração consciente
Da beleza das coisas da vida
Seu sorriso franco me anima 
Seu conselho certo me ensina
Beijo suas mãos e lhe digo
Meu querido, meu velho, meu amigo

Eu já lhe falei de tudo,
Mas tudo isso é pouco
Diante do que sinto...
Olhando seus cabelos tão bonitos,
Beijo suas mãos e digo
Meu querido, meu velho, meu amigo

sábado, 8 de agosto de 2015

O Pequeno Dever


Há uma falta de sal em tudo, uma falta de cor, uma falta de encanto.
Perdemos qualidade. Nas canções, nas danças, na literatura, na pintura, na arquitetura… Os nossos heróis são pessoas vulgares que se pintaram, ou, então, canalhas por quem nos deixámos enganar.
Quando fazemos turismo, visitamos antigos monumentos ou os monumentos da natureza: há muito que não fazemos nada que mereça ser apreciado. As grandes obras desta época foram coisas destinadas a fazer dinheiro…
Quando lemos (de qualquer modo sempre preferimos um filme, porque dá menos trabalho e é mais rápido…), lemos os livros que estão na moda. A moda, porém, não resulta – principalmente nos dias que correm – de um critério de qualidade, mas de campanhas publicitárias bem estudadas, que se destinam… a fazer dinheiro. Os outros escolhem por nós. E recolhem todo o benefício.
Somos homens entretidos com o nosso conforto e com o nosso prazer. Esquecemos que devíamos fazer da nossa vida uma obra-prima; que estávamos aqui para encher uma medida; que tínhamos um caminho empinado para percorrer.
Recusámos a santidade – porque era trabalhosa – e, com ela, partiram a beleza, a poesia e o amor.
Devia ser a busca da santidade a levar-nos por dentro de nós mesmos até chegarmos a um estado de tensão e de beleza interior que nos possibilitasse produzir coisas belas. Mas assim, não: ninguém pode dar aquilo que não tem.
Esvaziámo-nos. E agora as nossas mãos desenham à nossa volta figuras vazias.
Já nem sequer somos verdadeiramente capazes de amar. Por termos deixado de lutar contra o nosso pior inimigo – que somos nós mesmos, aquilo que de mau existe em nós – não somos verdadeiramente senhores das nossas pessoas. E, por isso, não temos a capacidade de nos darmos aos outros – que isso é o amor.
Evitamos os compromissos sérios, fugimos das palavras que não têm retorno; fugimos, portanto, do casamento (e se não fugimos desfazemo-lo quando surgem dificuldades). E isso é outra manifestação de não sermos donos de nós mesmos, de não termos tido as vitórias interiores necessárias para sermos homens no verdadeiro sentido da palavra. Não somos livres.
Os santos e os heróis… reduzimo-los a bonecos de gesso, a estátuas de calcário fora de moda colocadas em igrejas ou praças. Não olhamos para eles. Admitimos – convém-nos admitir isso… – que não passam de lendas: como seria possível a existência de homens tão diferentes daquilo que agora vemos em nós e à nossa volta? Passamos por alto, com a maior das facilidades, os milhões de documentos históricos…
E, no entanto, a santidade não é nem impossível nem feita de coisas estranhas: constrói-se no dia-a-dia, com as coisas e as situações em que tocamos habitualmente. Um homem que admiro muito e que nasceu há cem anos escreveu, entre muitas outras coisas, isto: “Queres deveras ser santo? Cumpre o pequeno dever de cada momento: faz o que deves e está no que fazes”. (Josemaría Escrivá, “Caminho”, n.º 815)
Um sorriso amável no meio do cansaço, terminar bem uma tarefa profissional, deixar um objeto arrumado no seu lugar, fazer neste momento o que não deve ser adiado, optar pelos meios honestos, procurar a verdade de cada situação, prestar um pequeno serviço a quem está perto de nós. Hoje um pouco melhor do que ontem.

O pequeno dever de cada momento: não é preciso ir longe para chegar longe!

terça-feira, 4 de agosto de 2015

O Rei


Amanhã enterrareis no grande fosso as vossas máquinas. Será com as mãos que haveis de crescer. Eu sou o rei e assim decidi, pois é necessário que deixeis tudo aquilo que vos impede de ser homens. Eu, o rei, utilizarei apenas as mãos.
Amanhã começareis a demolir as cidades. Depois partireis e fareis aldeias nos cumes do vento e nas colinas verdes e nos campos banhados de sol. Vivereis do vosso esforço, à mercê das dificuldades de que vos tinham ensinado a fugir. E haveis de abraçá-las.
Tereis então necessidade de vos ajudardes uns aos outros, voltando assim a descobrir coisas antigas e profundas. Compreendereis como sois pequenos, e isso é uma condição importante para poderdes crescer: para poderdes vir não a ter coisas, mas a ser aquilo que a semente de vós deve originar.
Eu, que sou o rei, partirei à vossa frente, e convosco sentir-me-ei pequeno e fraco.
Não posso oferecer-vos facilidades, porque quero ver-vos sorrir. Forjei a minha lei, e ela será o rosto do vosso caminho e as paredes da vossa casa. Hei de conduzir-vos por onde não vos apetece ir, para vos levar até dentro de vós mesmos.
E quando tiver passado a dor de transformar-vos naquilo que tendes necessidade de ser, hei de olhar para vós como Deus olha a Primavera num dia de Maio; como a mãe olha para o filho que nasceu agora.
Porque eu, o rei, sou a vossa mãe e o chicote que vos fere a carne. Não hesito no caminho que vos digo: alicerço-me em pó de reis e na luz do alto e na voz do sangue. E no cantar dos poetas.
Eu, que sou o rei, sou também a vossa luz; e sou aquilo que dá sentido aos vossos esforços e aos vossos sonhos. Porque eu existo, podeis ser como uma só coisa, apesar das vossas diferenças.
Se não fosse assim viveríeis em constantes disputas, e não saberíeis ir numa mesma direção. Porque não seríeis um povo, mas um grupo de gente.
É o pastor que dá unidade às ovelhas. Chama-as em assobio, para que sejam mais do que ovelhas. E eu, que sou o rei, sou também esse pastor que sai de madrugada. Alegro-me convosco e sofro as vossas dores e sei o vosso nome. E faço de cada noite minha uma vigília, pois só me deito depois de apagardes as vossas luzes.
Eu, que sou o rei, sou homem como vós. Quero que saibais isto. No princípio envergonhava-me quando vínheis ajoelhar-vos diante de mim. E tinha vontade de ir a correr erguer-vos. Depois compreendi que devia também curvar-me perante aquilo que vem do alto e, para chegar a vós, tem de passar por mim.

Porque eu, o rei, sou apenas um transmissor e uma ponte, e ninguém obedece tanto como eu. Em mim deveis amar aquilo que vem através mim: o resto é quase nada e podeis esquecê-lo.

domingo, 24 de maio de 2015

Humildade



Humildade

Senhor, fazei com que eu aceite 
minha pobreza tal como sempre foi. 

Que não sinta o que não tenho. 
Não lamente o que podia ter 
e se perdeu por caminhos errados 
e nunca mais voltou. 

Dai, Senhor, que minha humildade 
seja como a chuva desejada 
caindo mansa, 
longa noite escura 
numa terra sedenta 
e num telhado velho. 

Que eu possa agradecer a Vós, 
minha cama estreita, 
minhas coisinhas pobres, 
minha casa de chão, 
pedras e tábuas remontadas. 
E ter sempre um feixe de lenha 
debaixo do meu fogão de taipa, 
e acender, eu mesma, 
o fogo alegre da minha casa 
na manhã de um novo dia que começa.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Recordo Ainda


Recordo ainda... e nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta...
Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança...
Estrada afora após segui... Mas, aí,
Embora idade e senso eu aparente
Não vos iludais o velho que aqui vai:
Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino... acreditai!...
Que envelheceu, um dia, de repente!...

Mario Quintana

sábado, 25 de abril de 2015

Spartacus


Não há muitos dias, tive oportunidade de rever um filme dos antigos: Spartacus, dirigido por Stanley Kubrick.
Ocasião para confirmar que antigamente – tal como hoje – a corrupção se cola preferencialmente aos ricos, e que os pequenos são capazes de coisas maravilhosas ainda que lutando contra tudo e contra todos.
É apenas um filme, sem dúvida. Mas aquela revolta dos escravos – que existiu historicamente e colocou efetivamente em causa  o poderio romano – não teria sido o que foi se as coisas não se tivessem passado desse modo, mais coisa menos coisa, pelo menos nos aspectos essenciais.
Ocasião, também, para lembrar certas cenas que já não recordava exatamente e tinha fome de rever.
Uma delas sucede depois de os escravos terem perdido a batalha final. Os sobreviventes estão sentados em grupo no chão, rasgados e feridos. O comandante da Legião romana anuncia-lhes que escaparão à morte se o informarem de qual deles é Spartacus, no caso de ainda estar vivo. E Spartacus está realmente vivo, sentado entre os amigos.
O momento é de grande tensão. O realizador foca os olhos do chefe dos revoltosos e os olhos de vários dos companheiros. Está muita coisa em jogo: a vida de todos eles.
Eram amigos. Aqueles meses de contrariedades, lutas e perigos vividos em comum tinha-os unido de tal forma que era como se formassem uma só coisa. Agora os romanos queriam apenas o chefe…
Acontece por vezes que as grandes decisões se têm de tomar em muito pouco tempo. Spartacus ergue-se para revelar a sua identidade. A sua morte libertará os amigos. Mas quando vai dizer as palavras fatais, há um companheiro que se levanta mesmo ali ao lado e diz: “Eu sou Spartacus”.
É mentira, mas ele di-lo. Talvez porque de alguma forma seja verdade…
E logo outro homem se levanta, dizendo as mesmas palavras. E outro. E outro… Depressa estão todos de pé diante do oficial. Todos eles são Spartacus… e acabarão por morrer crucificados, um após outro, numa fila de cruzes que encheu quilómetros de estrada até entrar em Roma.
Existe algo de grandioso na atitude de Spartacus, que se entrega para salvar a vida dos amigos. Mas não é menos bela a reação dos companheiros. E há qualquer coisa em tudo isto que nos atrai irresistivelmente, porque o bem é atraente.
A lealdade consiste em não abandonarmos os nossos deveres e compromissos; em não abandonarmos os nossos amigos e as pessoas que confiaram em nós. É uma manifestação da grandeza da liberdade humana: leva-nos até ao fim do caminho que escolhemos, apesar de todas as dificuldades e obstáculos.
Na cor aparentemente cinza de estarmos todos os dias fielmente no nosso lugar, existe, escondido, o ouro daquilo que é sólido, firme e verdadeiro. Um homem leal é como uma rocha. Transmite segurança e espalha luz à sua volta.
Ao longo da História dos homens, como na cena do filme, a lealdade conduziu muitas pessoas a grandes sofrimentos e, até, a uma morte cruel. Mas, nos nossos dias, é uma virtude esquecida. Qualquer par de moedas, qualquer novidade aparentemente vantajosa nos faz esquecer os deveres e nos leva a quebrar os nossos laços, enchendo a nossa vida de traições a que nos vamos habituando.

Talvez devêssemos ver mais vezes filmes antigos…

segunda-feira, 20 de abril de 2015

À Maneira da Raiz


“Quando eu era pequeno… E mergulho fundo na minha infância. A infância, esse grande território de onde todos saímos! Pois donde sou eu ? Sou da minha infância. Sou da minha infância como se é de um país…”, escrevia Saint-Exupéry numa das suas obras: O Piloto de Guerra. Todos, realmente, comprovamos isto diariamente. O nosso mundo interior está povoado de imagens e recordações, muitas vezes nebulosas, que têm origem nos anos da nossa juventude. Em muitas ocasiões, temos, até, de recuar a essas épocas da nossa vida para compreendermos certas atitudes, hábitos, reações, gostos, que fazem parte da nossa maneira de existir.
Basta pensarmos em como nos sentimos tão estranhamente mergulhados em magia se, por acaso, depois de muito tempo de ausência, revisitamos lugares, ou encontramos pessoas, ou relemos livros que fizeram parte dos nossos verdes anos.
Como miúdos que éramos, brincávamos, sonhávamos, amávamos a aventura e entusiasmávamo-nos com feitos grandiosos. E, inevitavelmente, agarrávamo-nos aos heróis dos livros e dos filmes e das histórias que nos contavam. Esses heróis, juntamente com os comportamentos que porventura observámos naqueles que então nos rodeavam, ajudaram a construir a nossa personalidade. Para o bem ou para o mal. De alguma maneira, temos tendência a identificarmo-nos com os heróis (ou principais personagens, ainda que não sejam muito heroicas…) das narrativas e da vida. E fazemos de algo deles substância nossa.
Somos da nossa infância – de uma infância habitada por essas personagens – e não podemos fugir a isso. O nosso passado mais antigo persegue-nos e, em parte, explica-nos. Sucede como com a árvore, que não consegue libertar-se da sua raiz…
Como são os heróis que atualmente propomos como exemplos aos mais novos nos filmes e nos livros? São, sem dúvida nenhuma, na sua maior parte, inadequados: personagens com muito músculo ou grande beleza, ou com muita inteligência, ou muito bem equipadas materialmente. É muito pouco. Como exemplos, não servem de grande ajuda na tarefa de construir um homem, que é aquilo que se pretende com a educação.
Para enfrentar a vida, que é tão difícil, não se pode negar que qualquer uma dessas coisas dê bastante jeito; porém, facilmente se compreende que nenhuma delas é essencial. Nenhuma delas faz necessariamente, nem mesmo muito frequentemente, parte das características pessoais dos seres humanos. Nenhuma delas, além disso, é capaz de ser útil, se faltar um substrato mais profundamente humano: aquilo de que se faz um homem: os valores humanos.
Para que servem os músculos, quando chegar a hora de haver um cancro nesses músculos? Para que serve, sozinha, a inteligência, se ela, como lhe compete, nos mostrar um caminho que, por não termos coragem nem força de vontade, somos incapazes de seguir? Que é feito da beleza quando se envelhece? Sem os valores humanos, sem as virtudes humanas, andamos pela rama. Teremos, apenas, aparências de homens, projetos humanos inacabados, fracassos existenciais comprováveis na hora da verdade.
Propor aos jovens que se revejam e que se identifiquem com personagens destas é estar a enganá-los. É, além disso, escrever na água. É assim como tratar de enfeitar o que não existe: pregar um belo quadro numa parede que não tem estuque nem tijolos. Para haver uma rosa é preciso haver antes uma roseira; para haver um homem feliz é preciso haver, antes, um homem.
Precisam os jovens – e precisamos nós – de mais qualquer coisa: de exemplos de valentia, de honradez, de lealdade; precisam – precisamos – de ver noutras pessoas (também nas personagens das histórias) exemplos vivos de como podem e devem ser encarados a vida, o trabalho, o amor e a morte.
Existiram livros e filmes que cumpriam esse papel, mas agora não estamos bem servidos. Conheço pais que guardaram cuidadosamente, durante muitos anos, os livros da sua juventude e, chegada a altura, os entregam aos filhos, entretanto já suficientemente crescidos, como quem entrega um tesouro; conheço educadores que periodicamente visitam alfarrabistas em busca de um género de livros que já não podem ser encontrados noutros mercados mais acessíveis…
Quem me dera que as pessoas que têm responsabilidades neste campo entendessem melhor como são grandes, e graves, essas responsabilidades! Se a literatura juvenil e os filmes descerem o seu nível, farão, inevitavelmente, descer o nível dos homens do futuro. Publicar coisas para entreter os jovens, ou para fornecer informação, é bom. Mas não é suficientemente bom…

Está alguém comigo?

sábado, 18 de abril de 2015

Há Muitos Caminhos


Quando, há anos atrás, éramos bombardeados com a ideia de que havia no mundo uma população demasiado grande para a quantidade de alimento que era possível produzir, parecia existir uma certa lógica em que a solução evidente consistiria em reduzir a população mundial. Diziam-nos não que  era preciso encontrar as formas de produzir mais, ou de distribuir melhor o que se produzia, mas sim fazer com que aquilo que era produzido chegasse para todos, fazendo diminuindo o número desse “todos”. Os sobreviventes poderiam, desta forma, usufruir de um excelente nível de vida.
Assim se acabaria com a pobreza. Eliminando os pobres, elimina-se a pobreza. É evidente…
Depois, essa teoria não resistiu – embora ainda persista em muitos ambientes – a uma análise racional e objetiva dos fatos. E aceitam-se agora melhores caminhos que, implicando maior esforço, são mais humanos.
Quando a evolução da ciência nos permitiu conhecer melhor e manipular os processos de transmissão da vida humana, aperfeiçoaram-se as técnicas de abortar, de forma a poderem ser eliminados aqueles bebés que muito possivelmente nasceriam com alguma imperfeição.
E, quando a vida já não tiver para nós aquela qualidade que julgarmos necessária, teremos brevemente (nunca, espero eu…) formas de terminar com ela de forma doce, praticando a eutanásia…
Sonhamos com o dia em que seja possível escolher todas as características do filho que nos vai nascer: cor dos olhos e do cabelo, potência muscular, capacidade cerebral. E um caráter perfeito, todo de acordo com o nosso gosto. E sentimentos irrepreensíveis.
Somos  adeptos fervorosos da perfeição… E nem nos ralamos se, para chegarmos a ela, nos servimos de métodos… imperfeitos. Ou degradantes, ou vis, ou criminosos.
Não toleramos que a natureza, de acordo com os parâmetros que construímos na nossa mente, cometa erros ou permita anomalias.
De entre os adeptos da perfeição, Hitler foi um dos mais famosos…
E temos também um grande apreço pela justiça… Não é justo que existam pobres e ricos. Não compreendemos que possam viver, ao lado dos sãos, coxos e cegos e aleijados.
Menos ainda compreendemos que um cego possa ser feliz.
E não compreendemos que um deficiente possua a capacidade de ser feliz com a sua deficiência, porque não possuímos essa capacidade. Mas por que razão havíamos de a ter, se não precisamos dela?
Lançamo-nos com todas as forças à tarefa de eliminar da terra as injustiças e os erros da natureza.
Queremos acabar com as anomalias, com o insólito. E o insólito para nós é aquilo que não conseguimos compreender.
Mas eu já vi os cegos rirem.
Encontrei, entre os que sofrem, homens grandes. Os maiores de todos.
Vi aqueles que fizeram da sua dor os poemas que lemos na escola. E os outros, que no sofrimento do exílio compuseram as sinfonias grandiosas que ficaram para sempre.
Inclinei-me perante esses que souberam aceitar a sua pequenez diante do Deus Criador, ou da sábia natureza – conforme o olhar de cada um – e por esse caminho encontraram a maneira de alcançar a grandeza.
Conheci as mães que amaram filhos que não teriam escolhido, e que, ao amá-los, se engrandeceram e se tornaram a tal ponto ditosas que não se trocariam por ninguém. E que não trocariam o seu filho por nenhum outro.
Há muitos caminhos. Todos eles são belos e podem terminar bem.
Mas nós inventamos um modelo de vida perfeita (ou inventaram-no para nós, e martelaram-no aos nossos ouvidos até nos convencermos de que é invenção nossa?). Fora desse modelo, consideramos que tudo é anomalia e erro.
Se continuarmos assim – Saint-Exupéry disse algo semelhante em A Cidadela – havemos de querer suprimir as pérolas, porque não passam de uma anomalia resultante de um erro das ostras. Mandaremos enforcar as mulheres mais simultaneamente belas e virtuosas, por não serem vulgares. Apagaremos dos livros os nomes dos homens que escreveram belas sinfonias e geniais poemas, porque eles não foram iguais aos outros homens.
Permitam-me que diga que não concordo.
Eu tenho grande estima pelo “erro”, porque, além de permitir o génio, introduz a variedade.  Para eu poder apreciar uma árvore alta, tenho de aceitar a existência das árvores baixas. Ou ao contrário, se por acaso eu quiser nesse dia apreciar as árvores baixas.
Além do mais, eu amo o deserto, que não é senão um erro da floresta. E amo o oásis, que não passa, por sua vez, de um erro do deserto.
Estimo o erro também porque ele, ao autorizar a sombra, permite a luz.
O que são, numa árvore, os frutos bons? Se eu não conhecesse os frutos falhados, como é que havia de saber que os outros eram bons?
E como havia eu de saborear as alegrias do reencontro, se não houvesse a ausência?
Que sabor teria para mim a água fresca, se não tivesse tido sede?
Permitam-me que afirme que tudo é bom e belo. E que utilize a minha voz para dizer que se deve deixar ser aquilo que é.

Será preciso ter coragem, em alguns casos? Pois sejamos corajosos, que isso não é nada de especial num homem.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Personificação


Estuda-se em literatura uma figura de estilo chamada personificação. Consiste esse recurso em atribuir características humanas a seres que não são humanos. Dizer, por exemplo, que o dia está triste é uma personificação, visto que a tristeza é realmente algo que, propriamente, está apenas ao alcance das pessoas.
Era suposto que isto não passasse de um truque de linguagem, de uma forma expressiva de manifestar uma ideia. Mas assistimos ao fato absurdo de que a personificação tomou de assalto, nos nossos dias, a realidade.
Nós, com enorme frequência, tratamos as coisas, ou os animais, como se fossem pessoas. Não já de forma ingénua e inofensiva (estou agora a lembrar-me, com Camões, da linda Inês ensinando aos montes e às ervinhas o nome que tinha escrito no peito, o de Pedro, como se eles a pudessem entender…), mas de maneira enganosa e tóxica. Como se tivéssemos perdido a noção da realidade.
Alguns exemplos dariam vontade de rir, se não fossem tristes. Como tantas pessoas recusarem ter filhos e depois entregarem o seu afeto maternal ou paternal a cães e gatos. Vestindo-os, levando-os ao veterinário, alimentando-os como reis, transportando-os em berços…
Mas esses casos clamorosos talvez não sejam o pior de tudo. São exemplos de substituição afetiva que os psicólogos conhecem bem. E que talvez consigam remediar em alguns casos.
O pior de tudo deve ser a tremenda realidade de tantos e tantos que constantemente caem no engano de, literalmente, se apaixonarem por objetos, procurando com a posse deles satisfazer as ânsias dos seus corações.
Deixamo-nos entusiasmar. Pensamos em como seremos felizes se possuirmos “aquilo”. Sonhamos com o que poderemos fazer quando “o” tivermos. Lutamos por “ele” com todas as forças. Fazemos sacrifícios que talvez não fôssemos capazes de fazer por uma causa nobre, pelo bem de um amigo, por um sorriso de alguém que amamos.
E sucede que isto tem todos os sintomas de uma paixão…
Haverá alguém a quem isto ainda não tenha sucedido?
Mas as coisas não podem dar-nos mais do que aquilo que permite a sua natureza. E o nosso coração não se deixa enganar perpetuamente. Passado o tempo da novidade, passado o tempo que o objeto leva a desatualizar-se, uma vez feita a nossa experiência de qualquer coisa que estava na moda, esses objetos têm um lugar garantido na arrecadação lá de casa…
E de cada vez que isso nos acontece temos uma oportunidade de reparar bem no que nos está a acontecer e de arrepiar caminho. Ou, então, de continuarmos cada vez mais para diante nesse disparatado percurso.

Ou compreendemos que as coisas não passam de coisas, e que são vazias, ou nos lançamos com renovada avidez a conseguir a nova moda, a tecnologia mais moderna, o modelo mais acima, a última novidade… fazendo figuras de parvo.

segunda-feira, 2 de março de 2015

A Paz


A paz invadiu o meu coração
De repente, me encheu de paz
Como se o vento de um tufão
Arrancasse meus pés do chão
Onde eu já não me enterro mais
A paz fez um mar da revolução
Invadir meu destino; A paz
Como aquela grande explosão
Uma bomba sobre o Japão
Fez nascer o Japão da paz
Eu pensei em mim
Eu pensei em ti
Eu chorei por nós
Que contradição
Só a guerra faz
Nosso amor em paz

Eu vim
Vim parar na beira do cais
Onde a estrada chegou ao fim
Onde o fim da tarde é lilás
Onde o mar arrebenta em mim
O lamento de tantos "ais"

Gilberto Gil

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Ser Sem Ser


Somos do mais tolo que existe. Acontece-nos com frequência sermos vítimas da nossa falta de ligação à realidade. A televisão, os filmes, os computadores… levaram-nos até muito longe daquilo que é real. Talvez nos falte aquele contato diário com o campo, com os ritmos naturais, com os tempos de uma plantação de batatas.
Na nossa vida – em tantas circunstâncias diferentes – sucede com demasiada frequência que achamos ter direito aos frutos sem que tenha havido antes a árvore, sem que tenha havido antes a semente no mar da terra. Não sabemos esperar; não descobrimos a relação entre o tempo e os frutos do tempo, entre o esforço e os frutos do esforço. A causalidade é uma coisa desconhecida para nós.
A preguiça faz-nos imaginar que existem, além do mundo das máquinas, outros âmbitos em que basta carregar num botão para fazer surgir resultados.
E tanto nos convencemos de tudo isto que em muitos aspectos andamos inchados por fora e vazios por dentro. Andamos pintados, disfarçados… Porque quisemos ser sem ser. Ser porque sim, por decreto… Ser sem nos termos construído, sem a paciência, sem o esforço, sem a espera.
Não é possível fazer noitadas frequentes e ser-se um bom atleta; não é possível ser-se honesto sem antes disso ter dito muitas verdades daquelas difíceis; não é possível eliminar a droga sem antes disso ter edificado a família; não é possível acabar com a pedofilia permitindo a pornografia; não tem qualquer sentido armar-se em defensor dos direitos humanos e permitir o aborto.
Semente, árvore, fruto. Tempo. E, durante o tempo, esforço, dor, teimosia da boa, desânimo e de novo esperança.
Semente, árvore, fruto. De baixo para cima, do pequeno para o grande, do que não se vê para aquilo que é visível. O resto é mentira.
Mentira é a amizade feita à base de palmadinhas nas costas e da conjugação de interesses muitas vezes pouco nobres. Ou à base de noites bem bebidas em discotecas. Mentiras são os livros de belas capas, promovidos por poderosas campanhas publicitárias, e que por dentro têm… lixo. E, tantas vezes, não passam de mentiras as gravatas e os automóveis e as motas e as roupas de marca…
Quando não estamos dispostos ao esforço necessário para nos tornarmos fortes, belos, sérios, credíveis, podemos chegar a parecê-lo. Mas isso de pouco nos adianta, porque a mentira é estéril, e tudo o que com ela se consegue é fugaz, é ar e vento. E dói por dentro com dor verdadeira.
É pena que nem todos tenhamos passado pela experiência de trabalhar na construção de uma casa. Que nos tenhamos limitado a habitar casas feitas. Teriam sentido para nós palavras como “alicerce” ou “fundamento”. Saberíamos que um edifício cresce tijolo a tijolo; que a sua força reside no que não se vê; que não se começa a fazê-lo pelo telhado ou pelos acabamentos.

Aquilo que é bom necessita de tempo e de esforço e da repetição de gestos pequenos, muitas vezes dolorosos.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Tanto de Amor se Disse


Não tinham conseguido filhos. Por isso resolveram ir a uma dessas instituições que recolhem crianças abandonadas manifestar o seu desejo de adotarem uma criança.
Os responsáveis da instituição, enquanto tratavam da papelada, foram avisando que se tratava de um processo moroso e nada simples. Mas, quando foi feita a pergunta sobre que preferências tinha o casal quanto à criança a adotar, o processo descomplicou-se bastante. É claro que não se poderiam evitar umas quantas maçadas em forma de papel… mas a preferência que o casal manifestara era tão estranha, tão insólita… Talvez não fosse assim tão difícil.
Tinham dito: “Queremos ficar com uma criança que ninguém deseje; aquela que tenha menos hipóteses de ser adotada. Não nos importa que seja deficiente. E, se puderem ser duas, melhor”…
Tão estranho, tão inusitado.
E, no entanto, tão natural, tão bonito. Tão verdadeiramente de acordo com a nossa natureza.
Já nos parece estranho ver uma manifestação de amor. Já nos parece estranho que alguém olhe para uma criança como um enorme poço vazio que é preciso encher gota a gota, balde a balde. Com sacrifício e dor. Sem compensações, sem exigir nada em troca – o amor não tem outra compensação que não o próprio amor.
Li há muito tempo, num qualquer livro de poesia, dois versos que de vez em quando me vêm à cabeça, a propósito de muitas coisas a que vou assistindo. Não sei exatamente quem os escreveu, nem com que intenção foi escrito o poema de que faziam parte, o qual, de resto, esqueci totalmente. Mas os versos falam, mesmo sem a sua moldura original:
“Tanto de amor se disse / que não sei como dizer que amor é outra coisa”.
Tanto do amor se tem dito, que é quase um ato pornográfico falar, ou escrever, sobre amor.
Os homens descobriram há muitos séculos que o amor é o mais importante de tudo; que é ele que move o mundo; que é ele que guia os passos dos humanos; que nada mais interessa. Mas temos assistido a uma mudança subterrânea: continuaram a dar a mesma importância ao amor, mas mudaram subtilmente o conteúdo da palavra. Chamaram amor a outras coisas, à superfície do amor, à escória do amor.
Construíram uma mentira gigantesca.
Têm chamado amor a coisas nas quais não conseguimos descobrir senão egoísmo, equilíbrio de egoísmos, negócio.
Quem diz que amou só porque sentiu prazer não entende nada de amor. Porque quer colher, enquanto o amor é uma força que leva a semear.
Quem dá porque quer receber, ou quem se dá só enquanto dar não dói, é um comerciante. Calcula. O que equivale a dizer que nunca amou. E que a pessoa amada é uma mercadoria – sujeita, como as mercadorias, a critérios de qualidade e a prazos de validade.

Se nada interessa senão o amor, e se o amor é isto, temos aqui uma explicação para tantas coisas tristes que temos observado em nós e à nossa volta…

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Pouco a Pouco



O sol caminha sem que o vejas mover-se. E vem o entardecer e anoitece. Estás de novo em casa. Passou um dia.
Olhas-te ao espelho, um dia e outro, e não te vês crescer. É também assim que crescem as árvores e que o Inverno se torna Primavera e que a natureza produz flores e frutos, lagos e montanhas.
Pouco a pouco. Devagar. Sem que se note.
Há uma paciência imensa em tudo o que te rodeia. Um labor silencioso que alcança sempre os seus objetivos.
Pouco a pouco.
Uma semente pequena faz-se árvore grande com o tempo. E fica ali no seu lugar, sólida e generosa. Um dia, vens e abrigas-te à sua sombra. Mas essa sombra é uma obra de arte que esteve escondida por muito tempo e não pudeste acompanhar.
Não seria acertado que, na tua vida, desejasses a sombra refrescante – ou as flores, ou os frutos – sem que tivesse havido antes a semente aparentemente imóvel no lençol silencioso da terra, aquele sugar lento de minerais, a alternância repetida das estações.
Há uma grande sabedoria em saber esperar. Não me refiro a uma espera feita de inatividade e de indolência, mas àquela outra que é preenchida por pequenos passos firmes iluminados pela esperança.
A esperança não consiste simplesmente em aguardar com otimismo que a boa sorte nos bata à porta, em ter “pensamentos positivos”, mas na certeza de que aos passos corretos e constantes está prometido o objetivo bom que procuramos. Quando se vai no caminho certo, quando se trabalha nos alicerces de uma coisa boa, ter esperança é ter a certeza de que se chega.
Tudo aquilo que é bom se pode alcançar. Tudo se consegue. Pouco a pouco. A seu tempo. E há frutos que, por serem tão grandes, só chegarão depois de nós passarmos.
É bom que tenhas grandes objetivos, ideais elevados e nobres. Mas deves considerar que, precisamente por serem grandes e elevados, só podem estar no final de um caminho longo, frequentemente cheio de obstáculos; e que não é sensato procurar atalhos para chegar a eles.
Se alguém te quiser oferecer a noz descascada, a vitória sem combate, o diploma sem a sabedoria, foge depressa. Encher-te-ias de vazio.
Quando queres resultados rápidos em coisas grandes – quando prescindes do esforço prolongado, da lentidão, dos métodos apropriados a um objetivo – saltas para fora da realidade. Podes magoar-te e magoar outras pessoas. Tudo o que fizeres a partir desse ponto não te levará a nenhum lugar. Será tudo falso, por ter perdido esse ajustamento à realidade a que chamamos verdade. Hás de ver que te apodrecerá nas mãos, mais cedo ou mais tarde.

A tua impaciência, porém, não é necessariamente um defeito. Ela pode ser como o vento que empurra o navio. Serve-te dela não para te poupares a esforços, mas para te obrigares a crescer todos os dias. Para aperfeiçoares os teus gestos. Para te tornares mais capaz de ir longe e alto.

sábado, 10 de janeiro de 2015

Por Que Ele Esta Ali


Algumas vezes sabemos dentro de nós que devemos fazer qualquer coisa semelhante a plantar uma árvore, mesmo sabendo que nunca comeremos dos seus frutos nem descansaremos à sua sombra. Ou descobrimos que devemos aplicar-nos não tanto ao nosso pequeno problema, mas a reconstruir as ruínas imensas que nos rodeiam. E nunca como então somos tão grandes. E nunca como então estamos tão perto de nós mesmos.
Quem compreendeu o que é a verdade amou-a. Procurou e escavou. Desejou-a para si e para os outros, porque não há outra luz. Depois sofreu por ela, porque em toda a volta a mentira é poderosa. E continuou, sem se calar, com esse amor e a sua dor.
Quem vive para a família é habitado por ela e torna-se maior e faz o que nunca faria se vivesse para si mesmo.
Aquele que escutou os gritos silenciosos das crianças assassinadas antes de verem a luz – e as dores das mães enganadas que sofrem sem remédio – leva consigo o maior peso do mundo. Aparentemente pode pouco contra aqueles que se instalaram nos lugares onde se fazem as leis e se manobram televisões e jornais. Mas é um gigante todo aceso. Queima. E são os seus braços que sustentam este mundo doente.
E há o que quis ser médico não para garantir uma vida cómoda, mas para devolver ao mundo sorrisos que se tinham perdido. E o que sofre em si toda a fome de África. E o que se enamorou da justiça. E aquele que cuida de crianças incuráveis.
Uma vez perguntaram a um alpinista por que desejava escalar o alto pico nevado. Respondeu: “Porque ele está ali”. Queria com isso dizer a naturalidade do encontro do homem com o seu sonho, com a sua tarefa, consigo mesmo.
É triste viver sem grandeza. É como estar longe de nós mesmos. É ver apenas as sombras do mundo e da vida. É, de algum modo, não viver…
As coisas grandes são aquelas que o amor nos leva a fazer, e muitas vezes realizam-se por meio de pequenos gestos. Fazem-se pisando os nossos apetites e gostos, abandonando o cómodo estojo no qual temos tendência a encerrar a nossa existência.
Um dia sabemos que temos de partir. Que temos de fazer da vida uma outra coisa. Simplesmente isto. E vamos…
Nunca mais a paz de sermos inúteis; nunca mais os prazeres que não saciam, nunca mais a ânsia de segurança que nos vai roendo a juventude e a alegria.
É difícil subir o monte altíssimo. É preciso trocar tudo pelo instante mágico de chegar ao cume. Ali tudo é radicalmente verdadeiro: não é possível fingir que se vai a caminho. Deixam-se as forças na íngreme escalada, rasga-se a pele nos rochedos, abandona-se o aconchego do calor do corpo ao vento e à neve e ao gelo. Caímos e apetece-nos ficar por ali. Por vezes não sabemos se conseguimos dar mais um passo.
Mas é tão belo! Só ali se respira verdadeiramente. Só ali se vêem todas as coisas com o seu verdadeiro relevo e com as suas cores verdadeiras. Só ali um homem se sente realmente rico – ele que deixou tudo lá em baixo.
Os amigos que se fazem na montanha duram para sempre: nasceram da magra ração repartida debaixo das estrelas, de se apoiarem uns aos outros quando o que estava em jogo era a vida ou a morte, de cantarem juntos, das longas confidências testemunhadas apenas pelo vento.
Na montanha os amigos não são descartáveis companheiros de divertimento: precisam mesmo uns dos outros, fazem parte uns dos outros, uns são os outros.
Os que ficaram lá em baixo chamam-nos loucos. Encolhemos os ombros: esses queridos estão vivos, mas ainda estão mortos. Uma pessoa não vive quando vive apenas para si mesma. Não se vive sem sal, sem risco, sem aventura. Estão a precisar de uma inundação de alegria.
E tu? Eu quereria que partisses. Não necessariamente de um lugar para outro, mas para fora de ti. Para onde precisam de ti. Para te encontrares.

E, se às vezes te falo de paciência, digo-te agora que te apresses. Tenho pressa de te conhecer. Se também eu for corajoso, havemos de nos encontrar e saberei o teu nome. Trocaremos um abraço forte e saberemos que era necessário que nos encontrássemos.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Nada Por Cima, Nada Por Dentro


Temos a clara sensação de que este nosso tempo – que se encheu de agitação, de ruído e de festa – carece de alegria.
São poucas as pessoas alegres, essas que têm lá dentro qualquer coisa que não sabemos bem se é arco-íris ou fonte: qualquer coisa que transborda em graça, em elegância, em riso verdadeiramente puro.
Quando nos rimos é sempre de passagem; é sempre para esquecer que não encontramos motivos para rir. O nosso riso não passa de um esgar tolo, que não vem de dentro.
Este tempo é triste.
E a razão é que procuramos demasiado a felicidade. Procuramo-la com obsessão, com todos os meios – quase sempre com os meios errados; trazemo-la constantemente na boca; consideramo-la um direito nosso, a ponto de acharmos lícito eliminar qualquer coisa, exterior a nós, que consideramos opor-se a ela.
Tinham-nos dito – mas acabamos por o esquecer, por tanto corrermos na confusão em que deixamos que se transformasse a nossa vida – que era preciso renunciar à felicidade para se ser feliz…; que a felicidade consistia em aceitarmos ser infelizes, sem nos importarmos com isso.
Outrora, os homens aceitavam a vida como uma sucessão de dias, durante os quais havia que cumprir uma missão, uma tarefa, um ideal. Esses objetivos que tinham eram sempre qualquer coisa que se localizava fora deles e muito acima. Eram qualquer coisa tão grandiosa que merecia que eles se gastassem no seu cumprimento, muitas vezes até ao extremo de darem a vida por ela.
Consideravam muito justo e natural renunciar ao seu consolo, ao seu conforto, à sua comodidade, para obterem um bem relacionado com a família, com a pátria, com Deus…
Tinham a noção de que eram construtores.
Trocavam-se por esses bens. Adiavam a felicidade. Renunciavam a ela.
Mas cumpriam-se.
E era quase sempre com surpresa que um dia olhavam para si mesmos e se descobriam… felizes.
Tinham dado um sentido à vida. Tinham vidas cheias.
Mas nós… Começamos por perder Deus, porque ouvimos dizer que talvez não existisse e isso dava um certo jeito a determinada parte obscura de nós. Logo a seguir, naturalmente, perdemos o sentido de pátria. E há bastante tempo que começamos a perder a família.
Apagamos do horizonte, portanto, tudo aquilo que estava acima de nós. Já não nos submetemos; já não precisamos de servir; somos os maiores.
Resolvemos ser autossuficientes. Quebramos todos os laços. E – por confusão – chamamos liberdade a isso…

Mas se não existe nada acima de nós, de quem receberemos a felicidade? Devíamos pensar nisto: por mais tontos que sejamos, somos capazes de compreender que não possuímos a capacidade de darmos a nós mesmos a felicidade…