Senso Crítico

Senso Crítico

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O Zé


Em casa, o Dr. José Gonçalves é o Zé.
Ali, longe das câmaras da televisão, das reuniões do conselho de administração, dos jornalistas, do patrão, dos empregados, dos clientes, dos alunos, dos doentes, dos colegas… é somente o Zé.
Calça os chinelos, faz gestos prosaicos, resmunga, ri à vontade, permite-se caprichos, cantarola na ducha.
Conhecem-lhe as manias e os gostos; sabem como comportar-se quando está mal disposto, o que dizer para o convencer, que coisas o entusiasmam. É lá que realmente festeja o aniversário, é lá que lhe dão o prato preferido nos dias especiais. E sabem quais são os dias especiais. Em casa, o tempo tem assim cantinhos aconchegados como os tem o espaço. E há ritos velhinhos, cheios de sentido.
Em casa está tudo cheio de sentido.
Em casa pode errar. Em casa compreendem-no. Em casa ouvem aquilo que tem para dizer com verdadeira vontade de o escutar e de sentirem verdadeiramente as mesmas coisas que ele sente. Em casa dão tudo por um sorriso nos lábios dele.
Em casa têm uma paciência infinita. E sabem – pela forma como enfia a chave na fechadura, por uma certa expressão quase insensível do rosto – que aquele dia não correu lá muito bem.
Esperam um pouco – fingindo que não repararam em nada… – mas não tardam a contar-lhe coisas agradáveis, a pôr uma música que ele aprecia, a recordar episódios fantásticos que viveram juntos, a trazer umas fotografias antigas cheias de sabor, a lembrar-lhe que no Domingo há o Porto-Sporting… Até que ele dê a devida – a pequena – importância àquilo que o preocupava.
E, se o assunto for ainda mais sério, é certo que alguém, lá mais para o sossego da noite, se senta a sós junto dele e lhe diz baixinho: “conta lá…”.
O Zé termina sempre comovido os seus dias maus. Apetece-lhe agradecer e, às vezes, chorar.
Lá fora, o Dr. José Gonçalves é valorizado de acordo com aquilo que produz, de acordo com a sua maneira de funcionar. Pode descer ou subir na hierarquia da empresa, pode ser despedido ou promovido, ter um vencimento maior ou menor. Em casa, gostam do Zé assim como ele é. A família é o único lugar onde gostam do Zé por ele ser quem é: o filho, o marido, o pai, o irmão; aquela pessoa, com tudo o que faz parte dela, independentemente das suas qualidades e dos seus defeitos e daquilo que possa produzir.
Na família, aquilo que os une está num plano imensamente superior a tudo aquilo que os possa afastar. Muito acima das discórdias, das zangas, dos amuos, dos diferentes pontos de vista. Podem as ondas enfurecidas de um mar de inverno salpicar as estrelas? Alguém ligou aquelas vidas com um nó, e a vida de um é a vida dos outros. E o sorriso de um é a alegria dos outros. E a dor de um é a dor dos outros.
Mas o homem de hoje tem vindo a destruir – com uma frequência enorme e inexplicável – a sua família…

E, ao fazer isso, suicida-se de algum modo. Aniquila a sua personalidade, exila-se da pátria, abdica do seu reino. Transforma a sua pessoa numa coisa, pois passará a viver apenas nos ambientes em que é valorizado somente por aquilo que produz. Deixa de ser uma pessoa para passar a ser um funcionário…

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

A Vida é Bela


Todos os homens podem, e devem, em qualquer circunstância, considerar que a vida é bela e viver de acordo com isso. Ninguém tem motivos para a considerar desprovida de nobreza e grandiosidade. A dor e as contrariedades sempre fizeram parte da vida dos homens, e nem por isso eles deixaram de a amar.
Mas acontece que nesta vida se sofre realmente, e que – ao contrário do que antigamente sucedia – aqueles que sofrem são agora muitas vezes abandonados pelos outros, e têm de viver sozinhos com a sua dor. À qual se acrescenta, então, a dor enorme da solidão.
Sempre houve doentes e anciãos, mas antigamente eram considerados um tesouro. Agora não passam de um estorvo… E é só por isso que hoje se fala em eutanásia, quando no passado havia apenas o suicídio: o suicídio é uma decisão pessoal; a eutanásia acabará por ser uma imposição da sociedade.
Há em muitas cabeças uma noção da vida que é chocantemente pobre, desagradavelmente rasteira, tristemente vazia. Consiste em olhar para a vida de uma forma utilitária, com base numa concepção egoísta e em critérios apenas econômicos: se uma vida não é útil – se não é produtiva, se não proporciona todo o prazer – então não tem razão de ser. Pode eliminar-se, como se elimina um automóvel velho ou sem conserto, um par de sapatos rotos, uma camisola demasiadas vezes remendada.
E nem sequer é nas pessoas muito doentes, ou nos idosos que estão perto da morte, que essa mentalidade é frequente. Não. É nos outros, nos que estão convencidos de que ainda vão ficar aqui muito tempo e se acham no direito de construir uma sociedade com regras que lhes parecem mais perfeitas do que as da natureza, livres de quaisquer critérios e valores que não sejam os econômicos e os do bem estar.
A grande questão da eutanásia não consiste em se cada pessoa pode, ou não, ter a liberdade de escolher o seu destino. E também não reside em se uma pessoa pode pedir a outra que a mate.
É ainda pior do que isso: a questão está em que o triunfo desta visão utilitária da vida levaria – como, de resto, já está a suceder na Holanda – à eliminação de pessoas que, não querendo elas mesmas acabar com a vida, são consideradas inúteis por uma sociedade que se tornou materialista (a decisão é transferida para os médicos e para os familiares, e para os parlamentos, que muitas vezes estão ansiosos por se verem livres de um fardo).
Assim é que desaparece realmente a liberdade de escolher o próprio destino, e as pessoas se tornam em objetos à mercê dos interesses econômicos e dos falsos critérios de utilidade social.
É muito fácil aproveitar-se da extrema debilidade – física e emocional – de um doente terminal. Até para o convencer das presumíveis vantagens de uma “morte doce”. Muito mais fácil do que proporcionar-lhe todo o apoio e carinho de que necessita para levar a vida até ao fim – sem desistir – e morrer com verdadeira dignidade.

A dor é também uma falsa questão. A medicina sabe tirar a dor, e o resto… aguenta-se. O pior é a solidão e o abandono. Isso é que é difícil de suportar. E tem uma solução bem simples… Bastaria que todos os que estão à volta do doente olhassem para aquela vida – para a vida – sem egoísmo.

Porque


Já tinhas dito que sentias a morte perto. Tremia-te a voz e tremiam-te as mãos e tinhas o corpo cheio de dores. Depois, enquanto a tua imagem diminuía e se apagava diante do nosso olhar, crescias ainda mais nos nossos corações.
Em ires até ao fim houve uma forma de nos gritares aquilo que a tua voz já não era capaz de dizer.
Já de muitas maneiras te tínhamos agradecido, mas é conveniente dizer-te de novo um obrigado imenso.
Porque só tu nos disseste a verdade.
Os outros disseram-nos aquilo que queríamos ouvir e aquilo que nos agradava – pois queriam ganhar adeptos e lucrar com isso – mas tu, como amigo sincero, não tiveste receio de usar as palavras verdadeiras. Ainda que fossem duras, ainda que corresses o risco de ficar sozinho.
Porque, se o caminho real era empinado e agreste, não nos indicaste outro mais à medida da nossa preguiça, da nossa avareza, da nossa luxúria. Não quiseste enganar-nos. Disseste-nos como podíamos encontrar-nos conosco mesmos e confiaste em que seríamos capazes de ser fortes.
Porque os outros quiseram enriquecer à custa de ficarmos desnorteados, e tu quiseste tornar-nos ricos gastando o teu sangue e a tua vida.
Porque o teu dia começava cedo e acabava tarde. Porque tinhas, com tanta idade, a agenda tão cheia. Rezavas e trabalhavas, mas ao rezares trabalhavas e ao trabalhares rezavas. Ninguém sabe dizer quando é que descansavas.
Porque foi sempre para ti que olhámos em primeiro lugar, quando os poderosos preparavam novas guerras nos lugares onde há petróleo, quando o ódio derrubava edifícios, quando chegavam notícias de novos “avanços” científicos que pareciam fantásticos, mas nos cheiravam a esturro.
Porque os teus olhos eram limpos e o teu sorriso era bom e o teu coração bateu sempre ao lado do nosso.
Porque eras um dos nossos nas tuas vestes brancas. Porque envelheceste cuidando de nós. Porque foste baleado por dizeres a verdade. Porque não andavas mascarado, como os outros.
Porque não ficaste no teu palácio de Roma, mas vieste ter conosco até aos cantos mais pequenos do mundo e quiseste aprender conosco e sentir os nossos entusiasmos nobres. Porque quiseste falar-nos nas nossas línguas.
Porque quando te apresentámos as nossas crianças tu as beijaste e abençoaste sem fingimento, como quem faz uma coisa muito, muito importante.
Porque quando olhavas para nós vias uma bondade e uma força e uma beleza em que já não acreditávamos.
Porque o pequeno e o grande tinham um lugar do mesmo tamanho no teu coração. Porque não te preocupaste apenas com os que te eram próximos no pensamento, mas resolveste carregar sobre os teus ombros as dores, as preocupações, os lutos e as lágrimas de todos os homens de todas as religiões.
Porque guardavas no teu coração as nossas dores e sofrias com elas e nós somos muitos. Porque de tanto te abraçares ao teu Cristo crucificado te tornaste tão humano. Porque também escreveste as tuas poesias.

Porque salvaste tantas vidas. Porque trabalhaste pela paz. Porque chegaste ao fim de um caminho tão longo cheio da juventude do amor. Porque morreste repleto de obras e de sonhos, olhando para as tuas mãos, tão cheias, com a impressão de as veres vazias.