Quando, há anos atrás, éramos bombardeados com a ideia de
que havia no mundo uma população demasiado grande para a quantidade de alimento
que era possível produzir, parecia existir uma certa lógica em que a solução
evidente consistiria em reduzir a população mundial. Diziam-nos não que
era preciso encontrar as formas de produzir mais, ou de distribuir melhor o que
se produzia, mas sim fazer com que aquilo que era produzido chegasse para todos,
fazendo diminuindo o número desse “todos”. Os sobreviventes poderiam, desta
forma, usufruir de um excelente nível de vida.
Assim se acabaria com a pobreza. Eliminando os pobres,
elimina-se a pobreza. É evidente…
Depois, essa teoria não resistiu – embora ainda persista
em muitos ambientes – a uma análise racional e objetiva dos fatos. E aceitam-se
agora melhores caminhos que, implicando maior esforço, são mais humanos.
Quando a evolução da ciência nos permitiu conhecer melhor
e manipular os processos de transmissão da vida humana, aperfeiçoaram-se as
técnicas de abortar, de forma a poderem ser eliminados aqueles bebés que muito
possivelmente nasceriam com alguma imperfeição.
E, quando a vida já não tiver para nós aquela qualidade
que julgarmos necessária, teremos brevemente (nunca, espero eu…) formas de
terminar com ela de forma doce, praticando a eutanásia…
Sonhamos com o dia em que seja possível escolher todas as
características do filho que nos vai nascer: cor dos olhos e do cabelo,
potência muscular, capacidade cerebral. E um caráter perfeito, todo de acordo
com o nosso gosto. E sentimentos irrepreensíveis.
Somos adeptos fervorosos da perfeição… E nem nos
ralamos se, para chegarmos a ela, nos servimos de métodos… imperfeitos. Ou
degradantes, ou vis, ou criminosos.
Não toleramos que a natureza, de acordo com os parâmetros
que construímos na nossa mente, cometa erros ou permita anomalias.
De entre os adeptos da perfeição, Hitler foi um dos mais
famosos…
E temos também um grande apreço pela justiça… Não é justo
que existam pobres e ricos. Não compreendemos que possam viver, ao lado dos
sãos, coxos e cegos e aleijados.
Menos ainda compreendemos que um cego possa ser feliz.
E não compreendemos que um deficiente possua a capacidade
de ser feliz com a sua deficiência, porque não possuímos essa capacidade. Mas
por que razão havíamos de a ter, se não precisamos dela?
Lançamo-nos com todas as forças à tarefa de eliminar da
terra as injustiças e os erros da natureza.
Queremos acabar com as anomalias, com o insólito. E o
insólito para nós é aquilo que não conseguimos compreender.
Mas eu já vi os cegos rirem.
Encontrei, entre os que sofrem, homens grandes. Os
maiores de todos.
Vi aqueles que fizeram da sua dor os poemas que lemos na
escola. E os outros, que no sofrimento do exílio compuseram as sinfonias
grandiosas que ficaram para sempre.
Inclinei-me perante esses que souberam aceitar a sua
pequenez diante do Deus Criador, ou da sábia natureza – conforme o olhar de
cada um – e por esse caminho encontraram a maneira de alcançar a grandeza.
Conheci as mães que amaram filhos que não teriam
escolhido, e que, ao amá-los, se engrandeceram e se tornaram a tal ponto
ditosas que não se trocariam por ninguém. E que não trocariam o seu filho por
nenhum outro.
Há muitos caminhos. Todos eles são belos e podem terminar
bem.
Mas nós inventamos um modelo de vida perfeita (ou
inventaram-no para nós, e martelaram-no aos nossos ouvidos até nos convencermos
de que é invenção nossa?). Fora desse modelo, consideramos que tudo é anomalia
e erro.
Se continuarmos assim – Saint-Exupéry disse algo
semelhante em A Cidadela – havemos de querer suprimir as pérolas, porque não
passam de uma anomalia resultante de um erro das ostras. Mandaremos enforcar as
mulheres mais simultaneamente belas e virtuosas, por não serem vulgares.
Apagaremos dos livros os nomes dos homens que escreveram belas sinfonias e
geniais poemas, porque eles não foram iguais aos outros homens.
Permitam-me que diga que não concordo.
Eu tenho grande estima pelo “erro”, porque, além de
permitir o génio, introduz a variedade. Para eu poder apreciar uma árvore
alta, tenho de aceitar a existência das árvores baixas. Ou ao contrário, se por
acaso eu quiser nesse dia apreciar as árvores baixas.
Além do mais, eu amo o deserto, que não é senão um erro
da floresta. E amo o oásis, que não passa, por sua vez, de um erro do deserto.
Estimo o erro também porque ele, ao autorizar a sombra,
permite a luz.
O que são, numa árvore, os frutos bons? Se eu não
conhecesse os frutos falhados, como é que havia de saber que os outros eram
bons?
E como havia eu de saborear as alegrias do reencontro, se
não houvesse a ausência?
Que sabor teria para mim a água fresca, se não tivesse
tido sede?
Permitam-me que afirme que tudo é bom e belo. E que
utilize a minha voz para dizer que se deve deixar ser aquilo que é.
Será preciso ter coragem, em alguns casos? Pois sejamos
corajosos, que isso não é nada de especial num homem.
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