Senso Crítico

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segunda-feira, 20 de abril de 2015

À Maneira da Raiz


“Quando eu era pequeno… E mergulho fundo na minha infância. A infância, esse grande território de onde todos saímos! Pois donde sou eu ? Sou da minha infância. Sou da minha infância como se é de um país…”, escrevia Saint-Exupéry numa das suas obras: O Piloto de Guerra. Todos, realmente, comprovamos isto diariamente. O nosso mundo interior está povoado de imagens e recordações, muitas vezes nebulosas, que têm origem nos anos da nossa juventude. Em muitas ocasiões, temos, até, de recuar a essas épocas da nossa vida para compreendermos certas atitudes, hábitos, reações, gostos, que fazem parte da nossa maneira de existir.
Basta pensarmos em como nos sentimos tão estranhamente mergulhados em magia se, por acaso, depois de muito tempo de ausência, revisitamos lugares, ou encontramos pessoas, ou relemos livros que fizeram parte dos nossos verdes anos.
Como miúdos que éramos, brincávamos, sonhávamos, amávamos a aventura e entusiasmávamo-nos com feitos grandiosos. E, inevitavelmente, agarrávamo-nos aos heróis dos livros e dos filmes e das histórias que nos contavam. Esses heróis, juntamente com os comportamentos que porventura observámos naqueles que então nos rodeavam, ajudaram a construir a nossa personalidade. Para o bem ou para o mal. De alguma maneira, temos tendência a identificarmo-nos com os heróis (ou principais personagens, ainda que não sejam muito heroicas…) das narrativas e da vida. E fazemos de algo deles substância nossa.
Somos da nossa infância – de uma infância habitada por essas personagens – e não podemos fugir a isso. O nosso passado mais antigo persegue-nos e, em parte, explica-nos. Sucede como com a árvore, que não consegue libertar-se da sua raiz…
Como são os heróis que atualmente propomos como exemplos aos mais novos nos filmes e nos livros? São, sem dúvida nenhuma, na sua maior parte, inadequados: personagens com muito músculo ou grande beleza, ou com muita inteligência, ou muito bem equipadas materialmente. É muito pouco. Como exemplos, não servem de grande ajuda na tarefa de construir um homem, que é aquilo que se pretende com a educação.
Para enfrentar a vida, que é tão difícil, não se pode negar que qualquer uma dessas coisas dê bastante jeito; porém, facilmente se compreende que nenhuma delas é essencial. Nenhuma delas faz necessariamente, nem mesmo muito frequentemente, parte das características pessoais dos seres humanos. Nenhuma delas, além disso, é capaz de ser útil, se faltar um substrato mais profundamente humano: aquilo de que se faz um homem: os valores humanos.
Para que servem os músculos, quando chegar a hora de haver um cancro nesses músculos? Para que serve, sozinha, a inteligência, se ela, como lhe compete, nos mostrar um caminho que, por não termos coragem nem força de vontade, somos incapazes de seguir? Que é feito da beleza quando se envelhece? Sem os valores humanos, sem as virtudes humanas, andamos pela rama. Teremos, apenas, aparências de homens, projetos humanos inacabados, fracassos existenciais comprováveis na hora da verdade.
Propor aos jovens que se revejam e que se identifiquem com personagens destas é estar a enganá-los. É, além disso, escrever na água. É assim como tratar de enfeitar o que não existe: pregar um belo quadro numa parede que não tem estuque nem tijolos. Para haver uma rosa é preciso haver antes uma roseira; para haver um homem feliz é preciso haver, antes, um homem.
Precisam os jovens – e precisamos nós – de mais qualquer coisa: de exemplos de valentia, de honradez, de lealdade; precisam – precisamos – de ver noutras pessoas (também nas personagens das histórias) exemplos vivos de como podem e devem ser encarados a vida, o trabalho, o amor e a morte.
Existiram livros e filmes que cumpriam esse papel, mas agora não estamos bem servidos. Conheço pais que guardaram cuidadosamente, durante muitos anos, os livros da sua juventude e, chegada a altura, os entregam aos filhos, entretanto já suficientemente crescidos, como quem entrega um tesouro; conheço educadores que periodicamente visitam alfarrabistas em busca de um género de livros que já não podem ser encontrados noutros mercados mais acessíveis…
Quem me dera que as pessoas que têm responsabilidades neste campo entendessem melhor como são grandes, e graves, essas responsabilidades! Se a literatura juvenil e os filmes descerem o seu nível, farão, inevitavelmente, descer o nível dos homens do futuro. Publicar coisas para entreter os jovens, ou para fornecer informação, é bom. Mas não é suficientemente bom…

Está alguém comigo?

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