Eu e os outros fomos protagonistas de um milagre. Ninguém
ainda conseguiu explicar como estamos vivos neste momento… Ninguém encontra uma
razão para o fato de termos ultrapassado as fases da infância e da
adolescência.
Fazíamos coisas disparatadas sem que alguém nos
protegesse. Saíamos em grupo para tomar banho no velho açude, mesmo sem antes
termos aprendido a nadar corretamente. Partíamos de bicicleta, sem capacete,
para tão longe quanto aguentassem as forças ou a fome. Íamos sem destino.
Entrávamos em cavernas e perdíamo-nos lá dentro. Trepavamos muros altos para
entrarmos em casas abandonadas, onde estabelecíamos o nosso refúgio. Fazíamos
explorações, rasgávamo-nos, sujávamo-nos.
Íamos a pé para a escola, mesmo quando estava a chover,
mesmo quando ficava longe.
E lutávamos uns com os outros. Esmurrávamo-nos.
Partíamos, por vezes, ossos e dentes. Organizávamos, na mata do castelo,
grandes combates, nos quais utilizávamos espadas de madeira que tínhamos
construído. Sabíamos bem – por experiência própria, e não apenas porque nos
tivessem dito – que uma ferida profunda doía e demorava algum tempo a
cicatrizar. Viver, para nós, não podia ser sem correr riscos. Ou éramos de todo
inconscientes ou pensávamos que um anjo cuidava de nós.
Não havia um animador que viesse ensinar-nos modos corretos
de brincar. Nem organizações que fabricassem para nós formas de ocupação dos
tempos livres. Não tínhamos tempos livres. Não sei, aliás, como pudemos
sobreviver a tanta atividade.
Não parávamos. Tínhamos apetite: comíamos como cavalos e
não ficávamos obesos. O Sol alojava-se em nós e fazia-se cor e saúde.
Inventávamos as nossas brincadeiras e nunca precisamos
comprar jogos caros. Usávamos paus, pedras, velhos pneus, uma corda… Não tivemos
jogos electrónicos, 99 canais a cabo, filmes em vídeo, celulares, computadores
ou Internet.
Tivemos amigos.
Passávamos horas e horas a brincar lá fora com eles. Como
não havia os telemóveis (celulares), muitas vezes ninguém sabia exatamente onde
estávamos. Resolvíamos os nossos problemas. Lidávamos sozinhos com um pneu
furado na bicicleta, com um dia de tempestade, com um objeto perdido.
Descobríamos a maneira de arranjar uma bola de futebol, de apanhar um grilo, de
fazer uma fogueira. Aprendíamos a lidar com cada um dos nossos companheiros,
com as nossas capacidades, com as circunstâncias mais variadas.
Crescíamos.
Nem em casa sossegávamos muito, porque tínhamos irmãos.
Os nossos pais ainda não conheciam as novas regras sobre
o trabalho infantil. Mas também conseguimos sobreviver ao fato de termos de
fazer a cama, cozinhar algumas das nossas refeições, ajudar a pintar a casa,
preparar a roupa para vestir no dia seguinte, varrer a sala, lavar a louça.
Fazíamos loucuras. Brincávamos com cães não vacinados,
bebíamos todos pela mesma garrafa, secávamos a roupa no corpo. Dávamo-nos com
gente pouco recomendável. Pedíamos boleias. Entrávamos em acampamentos de
ciganos e tínhamos lá amigos. Aprendíamos coisas com eles.
Mil vezes podíamos ter morrido, mil vezes podíamos ter
sido assaltados, mil vezes podíamos ter adoecido gravemente. Mas sempre que
superávamos uma dificuldade tornávamo-nos mais fortes, mais capazes de
enfrentar o que viesse. Servíamo-nos dos nossos adversários para crescer. A dor
tornava-nos resistentes à dor; a necessidade de nos esforçarmos aumentava a
nossa força; uma derrota levava a que nos conhecêssemos melhor.
Sobrevivemos. Éramos os irmãos pequenos do vento.
Gostávamos de sentir a chuva a escorrer do cabelo para a face.
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