Senso Crítico
sexta-feira, 31 de agosto de 2012
A desilusão
Vamos pela vida intercalando épocas de entusiasmo com épocas de desilusão. De vez em quando andamos inchados como velas e caminhamos velozes pelo mar do mundo; noutras ocasiões – mais frequentes do que as outras – estamos murchos como folhas que o tempo engelhou. Temos períodos dourados, em que caminhamos sobre nuvens e tudo nos parece maravilhoso, e outros – tão cinzentos! – em que talvez nos apetecesse adormecer e ficar assim durante o tempo necessário para que tudo voltasse a ser belo.
Acontece-nos a todos e constitui, sem dúvida, um sinal de imaturidade. Somos ainda crianças em muitos aspectos.
A verdade é que não temos razões para nos deixarmos levar demasiado por entusiasmos, pois já devíamos ter aprendido que não podem ser duradouros.
A vida é que é, e não pode ser mais do que isso.
Desejamos muito uma coisa, pensamos que se a alcançarmos obtemos uma espécie de céu, batemo-nos por ela com todas as forças. Mas quando, finalmente, obtemos o que tanto desejávamos, passamos por duas fases desconcertantes. A primeira é um medo terrível de perder o que conquistamos: porque conhecemos o que aconteceu anteriormente a outras pessoas em situações semelhantes à nossa; porque existe a morte, a doença, o roubo…
A segunda fase chega com o tempo e não costuma demorar muito: sucede que aquilo que obtivemos perde – lentamente ou de um dia para o outro – o encanto. Gastou-se o dourado, esboroou-se o algodão das nuvens. Aquilo já não nos proporciona um paraíso.
E é nesse momento que chega a desilusão, com todo o seu cortejo de possíveis consequências desagradáveis: podem passar-nos pela cabeça coisas como mudarmos de profissão, mudarmos de clube, trocarmos de automóvel ou de casa, divorciarmo-nos… E, então, surge o desejo de partir atrás de outro entusiasmo: queremos voltar a amar…
Nunca mais conseguimos aprender o que é o amor.
Se nos desiludimos, a culpa não está nas coisas nem está nas outras pessoas. Se nos desiludimos, a culpa é nossa: porque nos deixamos iludir; porque nos deixamos levar por uma ilusão. Uma ilusão – há quem ganhe a vida a fazer ilusionismo – consiste em vestir com uma roupagem excessiva e falsa a realidade, de modo a distorcê-la ou a fazê-la parecer mais do que aquilo que é.
Quando nos desiludimos não estamos a ser justos nem com as pessoas nem com as coisas.
Nenhuma pessoa, nenhuma das coisas com que lidamos pode satisfazer plenamente o nosso desejo de bem, de felicidade, de beleza. Em primeiro lugar porque não são perfeitas (só a ilusão pode, temporariamente, fazer-nos ver nelas a perfeição). Depois, porque não são incorruptíveis nem eternas: apodrecem, gastam-se, engelham-se, engordam, quebram-se, ganham rugas… terminam.
Aquilo que procuramos – faz parte da nossa estrutura, não o podemos evitar – é perfeito e não tem fim. E não nos contentamos com menos de que isso. É por essa razão que nos desiludimos e que de novo nos iludimos: andamos à procura…
De resto, se todos ambicionamos um bem perfeito e eterno, ele deve existir. Só pode acontecer que exista. Mas deve ser preciso procurar num lugar mais adequado.
Paulo Geraldo
Tudo Ruim Mas Tudo Bem
O “tudo bem” é uma
expressão profundamente brasileira. Somos um
povo pacífico e
acomodado. Término do romance, sem dinheiro,
brigou com a família
e, após contar a desgraça inteira, diz:
“Mas tudo bem”.
Na verdade,
preferimos fingir que não ligamos e secretamente
diluir o que nos
chateia ou oprime, a remover o mal sob forma
cirúrgica. Para tal,
o “tudo bem” cai como luva. Revela uma
espécie de certeza
de que nada é duradouro, tudo acabará
modificado, por
mais que a rigidez pareça dominar.
O “tudo bem” possui
duas outras leituras que latejam por dentro
de sua significação
aparente. São elas: “Não faz mal” e “deixa
comigo
que adiante eu dou um jeito”.
“Não faz mal” quer
dizer “não importa”, “não há de ser nada”,
“tentaram me
atingir mas não conseguiram”. Quer, portanto, dizer:
“Olha, eu não
desistirei; estou apenas fingindo que não ligo”.
O “deixa comigo que
adiante eu dou um jeito” revela outra
atitude sábia do
chamado caráter nacional. Eis sua tradução detalhada palavra por palavra: “Eu
sei que as coisas não duram. Sei, também, que, enquanto estão quentes, as
pessoas se aferram. Não adianta forçar nessas horas. É esperar a emoção, o impulso,
a vontade e a teimosia passarem e, na medida em que a realidade
tiver atuado sobre
elas, diluindo o rigor anterior, então a
gente entra na
brecha e vai fazendo do jeito que quiser”.
Na medida, portanto,
em que a expressão “tudo bem”, como espelho da maneira de ser, da psicologia,
do caráter e do comportamento brasileiros, possui essas duas conotações revela
algumas características
(e até virtudes) da
maneira de ser brasileira; paciência; teimosia;
capacidade de
esperar; certeza de que não fará o que não quer fazer;
confiança nos seus
próprios métodos; certeza de que a realidade é
sempre complexa e
acaba se impondo com a variedade de seus resultados;
convicção de que
mexer demais nas coisas acaba atrapalhando; percepção
de que nada é
duradouro; de que é necessário criatividade para
impedir as
deformações da imposição de qualquer certeza exagerada; fé no tempo como o
grande e lúcido mediador das coisas; falta de pressa; e
certeza na
própria decisão. E, também, uma certa capacidade de perdoar e encontrar
desculpas para as coisas e prosseguir. O lado sábio
do brasileiro é
enrustido. Por malandragem ele finge não existir.
Que é tudo isso? Uma
teoria de acomodação? Do deixa pra depois?
Da alienação?
Estarei teorizando sobre o conformismo, uma
característica
negativa da nossa maneira de ser?
Se é o que você
acha, leitor, então tudo bem, tudo bem: mais adiante a gente se entende, ou
você me entende, ou eu o entendo, tudo bem, não esquente a cabeça e vá em
frente que no fim acaba dando tudo
certo. Brasileiramente. Ainda bem; isto é,
tudo bem. Tudo bem?
Artur da Távola
quarta-feira, 1 de agosto de 2012
Causa ou Culpa
Culpa!
Culpa! Culpa! Sempre a palavra culpa. Faz parte dos genes do ser humano. Somos,
todos, semoventes tristes, perseguidos por culpas reais,
irreais, fantásticas, conscientes, inconscientes,
verdadeiras, falsas,
impostas pelos outros. Culpa! Culpa! Todos se culpam ou
culpam aos
demais. Culpar-se ou culpar alguém, ou aos demais, eis uma
preferência
mundial...
Culpa, ó trágico engano de não se sabe que ancestral!
Chama-se
de culpa o que as vezes é causa. Fulano não é o culpado de
tal
ato. Fulano foi a causa de tal ato. Troque culpa por causa e
verá o mundo melhor. Causa não é culpa.
Chama-se de culpado quem às vezes é, tão somente, o
responsável
por algo. Responsável, sim, não culpado! Culpa é algo maior
e mais terrível, por isso é raro. Culpar não é tarefa dos homens.
Cabe aos deuses.
E por causa da troca de palavras (causa por culpa) sem
consciência
de que se está trocando conceitos seriíssimos, pessoas
passam pelo mundo atormentadas pela culpa. O mundo nada mais é que um grande
tanque
cheio de culpados imaginários e reais, seres a quem foi
ensinado
sentirem-se culpados, onde deveriam apenas sentir-se (quando
muito)
causadores ou responsáveis.
Culpa é raro e sério demais para ser vulgarizada assim. É
culpado quem mata. Não é culpado quem ama, mesmo se ama errado. É culpado quem
ofende. Não é culpado quem defende. Não tem culpa
quem não pode fazer mais do que faz ou, quem foi relegado a
miséria, a ignorância, nem quem tenta e não consegue. Não é
culpado quem fracassa. Não é culpado nem o que erra. Culpa é
assunto dos deuses.
Por que infernizar a
vida dos filhos, amigos e cidadãos dessa república de sonhos que é a vida, com
a idéia torpe de uma culpa
geral, abissal, precedente, mortificadora? Por que a mania
de buscar culpados para exorcizar os próprios medos?
Por uma falsa idéia de culpa mataram o Cristo. E todos os
mártires e avatares.
Não somos culpados: somos vítimas, cheias de esperança e
medo.
Somos, apenas, uma espécie rara de pessoas que mal se
agüentam
consigo mesmas, por isso vivem à cata de culpas.
Que nasça a responsabilidade maior de cada ser humano no
lugar
da culpa! Culpa é um legado doloroso de alguma angústia
ancestral, alguma dor existencial ou doença muito séria, alguma imperfeição de
nossa formação biológica, que é preciso arquivar.
Artur da Távola
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