Recordo o cheiro dos lençóis lavados, a guerra para lavar
os dentes, histórias contadas antes de adormecer. O desejo de chegar a casa, o
aconchego e, depois, outra vez a vontade de sair.
Corria para a minha mãe quando caía e me magoava. Não
para o meu pai, porque seria preciso dar muitas explicações e ouvir de novo o
racional “Eu já te tinha avisado…”.
Um prato especial nos dias de festa. Birras. É preciso
vestir aquela roupa nova. É a tua vez de lavar a louça.
Não sei muito bem a partir de que idade é que os irmãos
deixam de ser irritantes…
Depois do jantar fazíamos jogos e entretínhamo-nos uns
com os outros. Por vezes, quando era verão, saíamos a passear e apanhávamos
pirilampos.
A chuva lá fora, o calor dentro de casa. Um livro. Um
amigo que vem lanchar. Um ralhete porque desta vez passamos dos limites e as
calças vêm cheias de lama. Já te disse tantas vezes que não se deve deixar aí a
roupa suja…
Acordar com um beijo. Adormecer com uma oração.
Natal. Os primos. Visitas a casa dos avós. Brincadeiras.
Às vezes notar, sem notar, uma expressão semelhante a tristeza ou cansaço no
rosto do pai ou no rosto da mãe. Depois, brincadeira de novo. Música, flores,
sorrisos. É tão bom ser pequenino…
Coisas pequenas. Diárias. Vulgares. Mas enormes, únicas,
cheias de magia.
Durante muito tempo estive convencido de que era a
infância que acendia nas pequenas coisas de todos os dias essa música e esse
encanto que agora recordo. Que era por ser pequeno na altura que todas essas
coisas são agora especiais. Mas há tantas pessoas que foram também pequenas e
nunca poderão ter recordações destas… E não porque não tivessem tido pais, ou
porque estes os tivessem maltratado ou porque tivessem sido demasiado pobres.
Geralmente não é muito difícil casar, ter filhos, uma
casa para viver. Mas depois de se conseguir isso podemos chegar à conclusão de
que é muitíssimo difícil construir uma família. É talvez como ter já os tijolos
e, no entanto, sentirmo-nos incapazes de encontrar o cimento que os una, lhes
dê forma, consistência e identidade.
É fundamental ter uma infância feliz… E começámos então a
dar aos filhos coisas excelentes e atividades fantásticas e experiências
divertidas. E enchemos de trabalho os dias, para lhes podermos dar tudo isso.
Saímos, portanto, de casa. E a casa esvaziou-se.
E deixámos de viver com os filhos. As coisas fantásticas
que lhes demos acabaram por ocupar quase todo o tempo em que deveríamos ter
estado com eles.
É muito fácil errar o caminho.
Ao crescer, descobri que para se ter os lençóis lavados e
passados a ferro é preciso frequentemente deitar-se mais tarde e dormir menos.
Aprendi que é preciso ter paciência para fazer uma
criança ganhar o hábito de lavar os dentes ou deixar a roupa suja no local
correto. E que a paciência dói.
Reparei em que as pessoas mais velhas gostam de sossego
depois do jantar, porque se cansam facilmente. E que, por isso, tem um alto
preço fazer nessa altura jogos com crianças ou correr atrás de pirilampos.
Vim assim a saber que o cimento da família é aquilo que
se faz pelos outros, deixando de fazer aquilo de que se gosta, para os ver
felizes, para os construir, para os ajudar a chegar onde devem chegar. Aquelas
pequenas coisas da minha infância foram grandes, afinal, porque eram feitas de
um amor sacrificado e escondido.
Esse amor toca naquilo que é pequeno e engrandece-o.
Desenha flores no pó do quotidiano. Só ele permanece.
Que lindo!
ResponderExcluirÉ maravilhoso ter boas lembranças da infância. Todos deveriam ter direito a esse mundo colorido, cheio de brincadeiras e sem preocupações.
Beijos!
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