Senso Crítico

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terça-feira, 4 de agosto de 2015

O Rei


Amanhã enterrareis no grande fosso as vossas máquinas. Será com as mãos que haveis de crescer. Eu sou o rei e assim decidi, pois é necessário que deixeis tudo aquilo que vos impede de ser homens. Eu, o rei, utilizarei apenas as mãos.
Amanhã começareis a demolir as cidades. Depois partireis e fareis aldeias nos cumes do vento e nas colinas verdes e nos campos banhados de sol. Vivereis do vosso esforço, à mercê das dificuldades de que vos tinham ensinado a fugir. E haveis de abraçá-las.
Tereis então necessidade de vos ajudardes uns aos outros, voltando assim a descobrir coisas antigas e profundas. Compreendereis como sois pequenos, e isso é uma condição importante para poderdes crescer: para poderdes vir não a ter coisas, mas a ser aquilo que a semente de vós deve originar.
Eu, que sou o rei, partirei à vossa frente, e convosco sentir-me-ei pequeno e fraco.
Não posso oferecer-vos facilidades, porque quero ver-vos sorrir. Forjei a minha lei, e ela será o rosto do vosso caminho e as paredes da vossa casa. Hei de conduzir-vos por onde não vos apetece ir, para vos levar até dentro de vós mesmos.
E quando tiver passado a dor de transformar-vos naquilo que tendes necessidade de ser, hei de olhar para vós como Deus olha a Primavera num dia de Maio; como a mãe olha para o filho que nasceu agora.
Porque eu, o rei, sou a vossa mãe e o chicote que vos fere a carne. Não hesito no caminho que vos digo: alicerço-me em pó de reis e na luz do alto e na voz do sangue. E no cantar dos poetas.
Eu, que sou o rei, sou também a vossa luz; e sou aquilo que dá sentido aos vossos esforços e aos vossos sonhos. Porque eu existo, podeis ser como uma só coisa, apesar das vossas diferenças.
Se não fosse assim viveríeis em constantes disputas, e não saberíeis ir numa mesma direção. Porque não seríeis um povo, mas um grupo de gente.
É o pastor que dá unidade às ovelhas. Chama-as em assobio, para que sejam mais do que ovelhas. E eu, que sou o rei, sou também esse pastor que sai de madrugada. Alegro-me convosco e sofro as vossas dores e sei o vosso nome. E faço de cada noite minha uma vigília, pois só me deito depois de apagardes as vossas luzes.
Eu, que sou o rei, sou homem como vós. Quero que saibais isto. No princípio envergonhava-me quando vínheis ajoelhar-vos diante de mim. E tinha vontade de ir a correr erguer-vos. Depois compreendi que devia também curvar-me perante aquilo que vem do alto e, para chegar a vós, tem de passar por mim.

Porque eu, o rei, sou apenas um transmissor e uma ponte, e ninguém obedece tanto como eu. Em mim deveis amar aquilo que vem através mim: o resto é quase nada e podeis esquecê-lo.

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