Estuda-se em literatura uma figura de estilo chamada
personificação. Consiste esse recurso em atribuir características humanas a
seres que não são humanos. Dizer, por exemplo, que o dia está triste é uma
personificação, visto que a tristeza é realmente algo que, propriamente, está
apenas ao alcance das pessoas.
Era suposto que isto não passasse de um truque de linguagem,
de uma forma expressiva de manifestar uma ideia. Mas assistimos ao fato absurdo
de que a personificação tomou de assalto, nos nossos dias, a realidade.
Nós, com enorme frequência, tratamos as coisas, ou os
animais, como se fossem pessoas. Não já de forma ingénua e inofensiva (estou
agora a lembrar-me, com Camões, da linda Inês ensinando aos montes e às
ervinhas o nome que tinha escrito no peito, o de Pedro, como se eles a pudessem
entender…), mas de maneira enganosa e tóxica. Como se tivéssemos perdido a
noção da realidade.
Alguns exemplos dariam vontade de rir, se não fossem
tristes. Como tantas pessoas recusarem ter filhos e depois entregarem o seu afeto
maternal ou paternal a cães e gatos. Vestindo-os, levando-os ao veterinário,
alimentando-os como reis, transportando-os em berços…
Mas esses casos clamorosos talvez não sejam o pior de
tudo. São exemplos de substituição afetiva que os psicólogos conhecem bem. E
que talvez consigam remediar em alguns casos.
O pior de tudo deve ser a tremenda realidade de tantos e
tantos que constantemente caem no engano de, literalmente, se apaixonarem por
objetos, procurando com a posse deles satisfazer as ânsias dos seus corações.
Deixamo-nos entusiasmar. Pensamos em como seremos felizes
se possuirmos “aquilo”. Sonhamos com o que poderemos fazer quando “o” tivermos.
Lutamos por “ele” com todas as forças. Fazemos sacrifícios que talvez não
fôssemos capazes de fazer por uma causa nobre, pelo bem de um amigo, por um
sorriso de alguém que amamos.
E sucede que isto tem todos os sintomas de uma paixão…
Haverá alguém a quem isto ainda não tenha sucedido?
Mas as coisas não podem dar-nos mais do que aquilo que permite
a sua natureza. E o nosso coração não se deixa enganar perpetuamente. Passado o
tempo da novidade, passado o tempo que o objeto leva a desatualizar-se, uma vez
feita a nossa experiência de qualquer coisa que estava na moda, esses objetos
têm um lugar garantido na arrecadação lá de casa…
E de cada vez que isso nos acontece temos uma
oportunidade de reparar bem no que nos está a acontecer e de arrepiar caminho.
Ou, então, de continuarmos cada vez mais para diante nesse disparatado
percurso.
Ou compreendemos que as coisas não passam de coisas, e
que são vazias, ou nos lançamos com renovada avidez a conseguir a nova moda, a
tecnologia mais moderna, o modelo mais acima, a última novidade… fazendo
figuras de parvo.