Não tinham conseguido filhos. Por isso resolveram ir a
uma dessas instituições que recolhem crianças abandonadas manifestar o seu
desejo de adotarem uma criança.
Os responsáveis da instituição, enquanto tratavam da
papelada, foram avisando que se tratava de um processo moroso e nada simples.
Mas, quando foi feita a pergunta sobre que preferências tinha o casal quanto à
criança a adotar, o processo descomplicou-se bastante. É claro que não se
poderiam evitar umas quantas maçadas em forma de papel… mas a preferência que o
casal manifestara era tão estranha, tão insólita… Talvez não fosse assim tão
difícil.
Tinham dito: “Queremos ficar com uma criança que ninguém
deseje; aquela que tenha menos hipóteses de ser adotada. Não nos importa que
seja deficiente. E, se puderem ser duas, melhor”…
Tão estranho, tão inusitado.
E, no entanto, tão natural, tão bonito. Tão
verdadeiramente de acordo com a nossa natureza.
Já nos parece estranho ver uma manifestação de amor. Já
nos parece estranho que alguém olhe para uma criança como um enorme poço vazio
que é preciso encher gota a gota, balde a balde. Com sacrifício e dor. Sem
compensações, sem exigir nada em troca – o amor não tem outra compensação que
não o próprio amor.
Li há muito tempo, num qualquer livro de poesia, dois
versos que de vez em quando me vêm à cabeça, a propósito de muitas coisas a que
vou assistindo. Não sei exatamente quem os escreveu, nem com que intenção foi
escrito o poema de que faziam parte, o qual, de resto, esqueci totalmente. Mas
os versos falam, mesmo sem a sua moldura original:
“Tanto de amor se disse / que não sei como dizer que amor
é outra coisa”.
Tanto do amor se tem dito, que é quase um ato
pornográfico falar, ou escrever, sobre amor.
Os homens descobriram há muitos séculos que o amor é o
mais importante de tudo; que é ele que move o mundo; que é ele que guia os
passos dos humanos; que nada mais interessa. Mas temos assistido a uma mudança
subterrânea: continuaram a dar a mesma importância ao amor, mas mudaram
subtilmente o conteúdo da palavra. Chamaram amor a outras coisas, à superfície
do amor, à escória do amor.
Construíram uma mentira gigantesca.
Têm chamado amor a coisas nas quais não conseguimos
descobrir senão egoísmo, equilíbrio de egoísmos, negócio.
Quem diz que amou só porque sentiu prazer não entende
nada de amor. Porque quer colher, enquanto o amor é uma força que leva a
semear.
Quem dá porque quer receber, ou quem se dá só enquanto
dar não dói, é um comerciante. Calcula. O que equivale a dizer que nunca amou.
E que a pessoa amada é uma mercadoria – sujeita, como as mercadorias, a
critérios de qualidade e a prazos de validade.
Se nada interessa senão o amor, e se o amor é isto, temos
aqui uma explicação para tantas coisas tristes que temos observado em nós e à
nossa volta…
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