Senso Crítico

Senso Crítico

domingo, 30 de novembro de 2014

Irmãos Pequenos do Vento


Eu e os outros fomos protagonistas de um milagre. Ninguém ainda conseguiu explicar como estamos vivos neste momento… Ninguém encontra uma razão para o fato de termos ultrapassado as fases da infância e da adolescência.
Fazíamos coisas disparatadas sem que alguém nos protegesse. Saíamos em grupo para tomar banho no velho açude, mesmo sem antes termos aprendido a nadar corretamente. Partíamos de bicicleta, sem capacete, para tão longe quanto aguentassem as forças ou a fome. Íamos sem destino. Entrávamos em cavernas e perdíamo-nos lá dentro. Trepavamos muros altos para entrarmos em casas abandonadas, onde estabelecíamos o nosso refúgio. Fazíamos explorações, rasgávamo-nos, sujávamo-nos.
Íamos a pé para a escola, mesmo quando estava a chover, mesmo quando ficava longe.
E lutávamos uns com os outros. Esmurrávamo-nos. Partíamos, por vezes, ossos e dentes. Organizávamos, na mata do castelo, grandes combates, nos quais utilizávamos espadas de madeira que tínhamos construído. Sabíamos bem – por experiência própria, e não apenas porque nos tivessem dito – que uma ferida profunda doía e demorava algum tempo a cicatrizar. Viver, para nós, não podia ser sem correr riscos. Ou éramos de todo inconscientes ou pensávamos que um anjo cuidava de nós.
Não havia um animador que viesse ensinar-nos modos corretos de brincar. Nem organizações que fabricassem para nós formas de ocupação dos tempos livres. Não tínhamos tempos livres. Não sei, aliás,  como pudemos sobreviver a tanta atividade.
Não parávamos. Tínhamos apetite: comíamos como cavalos e não ficávamos obesos. O Sol alojava-se em nós e fazia-se cor e saúde.
Inventávamos as nossas brincadeiras e nunca precisamos comprar jogos caros. Usávamos paus, pedras, velhos pneus, uma corda… Não tivemos jogos electrónicos, 99 canais a cabo, filmes em vídeo, celulares, computadores ou Internet.
Tivemos  amigos.
Passávamos horas e horas a brincar lá fora com eles. Como não havia os telemóveis (celulares), muitas vezes ninguém sabia exatamente onde estávamos. Resolvíamos os nossos problemas. Lidávamos sozinhos com um pneu furado na bicicleta, com um dia de tempestade, com um objeto perdido. Descobríamos a maneira de arranjar uma bola de futebol, de apanhar um grilo, de fazer uma fogueira. Aprendíamos a lidar com cada um dos nossos companheiros, com as nossas capacidades, com as circunstâncias mais variadas.
Crescíamos.
Nem em casa sossegávamos muito, porque tínhamos irmãos.
Os nossos pais ainda não conheciam as novas regras sobre o trabalho infantil. Mas também conseguimos sobreviver ao fato de termos de fazer a cama, cozinhar algumas das nossas refeições, ajudar a pintar a casa, preparar a roupa para vestir no dia seguinte, varrer a sala, lavar a louça.
Fazíamos loucuras. Brincávamos com cães não vacinados, bebíamos todos pela mesma garrafa, secávamos a roupa no corpo. Dávamo-nos com gente pouco recomendável. Pedíamos boleias. Entrávamos em acampamentos de ciganos e tínhamos lá amigos. Aprendíamos coisas com eles.
Mil vezes podíamos ter morrido, mil vezes podíamos ter sido assaltados, mil vezes podíamos ter adoecido gravemente. Mas sempre que superávamos uma dificuldade tornávamo-nos mais fortes, mais capazes de enfrentar o que viesse. Servíamo-nos dos nossos adversários para crescer. A dor tornava-nos resistentes à dor; a necessidade de nos esforçarmos aumentava a nossa força; uma derrota levava a que nos conhecêssemos melhor.

Sobrevivemos. Éramos os irmãos pequenos do vento. Gostávamos de sentir a chuva a escorrer do cabelo para a face.

O Jogo das Pedrinhas


Havia pouca gente no estabelecimento quando entrei. Enquanto tomava o meu café pude assistir com sossego ao acontecimento, cuja importância fui compreendendo. Era o jogo das pedrinhas. A menina tinha talvez três anos e estava sentada sobre o balcão. Um senhor, que parecia ser o pai, estava diante dela e tinha de adivinhar em qual das mãos tinha a menina colocado uma pedra pequenina. Ela, com os braços atrás das costas, sem que o pai pudesse ver, deixara a pedra numa das mãos, e agora estendia-as ambas, fechadas, para que o pai adivinhasse.
O pai escolheu uma das mãos, mas não acertou. Foi isso o que a criança lhe disse, começando imediatamente a preparar-se para repetir o jogo. Mas o pai pediu-lhe que abrisse as duas mãos com as palmas para cima. Era preciso que ela apresentasse a prova de que o pai não tinha acertado…
O senhor partiu do princípio de que a filha podia estar a mentir. Não estava… mas abriu as mãos.
Enquanto tomava o meu café assisti ao instante exato em que aquela menina aprendeu que não era merecedora de confiança, que não acreditavam nela, que a sua palavra não tinha valor. Que esperavam dela que fosse capaz de enganar os outros para alcançar os seus objetivos.
Aos três anos. Num jogo. Com o pai.
Muito se poderia dizer acerca das mentiras das crianças ao longo do seu desenvolvimento – muitas vezes relacionadas com a aprendizagem de o que é a realidade e o que é a imaginação. Mas este caso não tem relação com isso.
Enquanto tomava o meu café pareceu-me estar a assistir a um exemplo concreto de como se colocam minas nos alicerces do mundo. “Estamos todos num mesmo barco, em mar tempestuoso, e devemos uns aos outros uma terrível lealdade”, escreveu Chesterton. Essa lealdade é necessária nos fundamentos da convivência entre os homens.
E lembrei-me de como os antigos tinham tão elevada estima pela sua honra que a defendiam com unhas e dentes, de como consideravam uma desgraça a sua perda.
A honra de uma pessoa é o reconhecimento de que essa pessoa é íntegra e digna de confiança. Não como consequência de uma campanha artificial, como agora se consegue através da publicidade e da propaganda, mas como resultado de um longo e constante esforço por ter um comportamento correto.
O mundo é uma selva, e isso conduziu-nos à desconfiança. Desconfiamos por princípio, por hábito, por medo, por insegurança, por prudência. Desconfiamos sempre. Se alguma vez confiamos, passamos muito possivelmente pela amargura de sermos enganados. Desconfiamos porque a nossa experiência de vida nos levou a desconfiar. Aprendemos com os nossos erros e fazemos muito bem.
Fazemos muito bem… desde que não queiramos fazer nada para mudar o mundo, desde que estejamos contentes com a selva que nos rodeia, desde que não nos importemos com ferir as pessoas que estão ao nosso lado. Porque é preciso que tomemos consciência de que ofendemos uma pessoa quando partimos do princípio de que ela não é digna de confiança. E de que essa ofensa é sentida muito mais vivamente se essa pessoa for jovem. Não há melhor forma de fazer de uma criança um mentiroso do que desconfiar dela. E confiar nela é necessário para que venha a ser um adulto verdadeiro.
Nas crianças devemos confiar sempre. Ao lidar com elas estamos a construir o mundo. Devem crescer com a noção de que se espera delas a verdade, a nobreza, a dignidade. Devem saber que é isso o normal, embora exija esforço.
Querem ser boas, querem aprender, querem ser gente a sério. São o que de melhor há no mundo. Têm os olhos limpos, o coração limpo e as mãos limpas. Acreditemos nelas. Se alguma vez nos enganarem, não há o risco de que entendam esse comportamento como normal, porque se hão de lembrar de que confiamos nelas. Não pensarão: “toda a gente faz isto”. Sentir-se-ão mal. Terão pena. Voltarão à verdade.

Mesmo que tenhamos sérias dúvidas, será melhor deixarmo-nos enganar do que lançar sobre elas a suspeição, que magoa e marca e arruína. Pode perder-se qualquer coisa, mas é muito mais – e está noutro plano – aquilo que se ganha.

O Lago


Não deves recusar o esforço, porque ele é um caminho.
Num lugar que terás de descobrir – que fica sempre alto e longe – existe para ti uma lagoa meio escavada na rocha, com relva muito verde em parte das margens e cantos alegres de pássaros calmos.
Encontram-se lá os que amas, fortes e generosos. Sorridentes.
Há sol e também a sombra de altas árvores. Por cima, apenas o céu, à distância de um último salto.
Não é um destino inevitável, mas um lugar onde és esperado e que podes, ou não, alcançar, conforme a medida do teu desejo. Só quando lá chegares terás alcançado toda a tua envergadura. Só lá te encontrarás contigo mesmo.
Existes para chegar  a esse lago. Os teus olhos são capazes de pousar nas suas águas limpas, que refletem já o céu que lhes há por cima.
Não se pode querer mal aos caminhos que conduzem a lugares assim, embora sejam escarpados e se torne impossível evitar ferimentos e cansaços quando se segue por eles.
Se o teu desejo de chegar for grande, nenhum esforço te parecerá demasiado penoso. E, embora vás a caminho, terás sempre contigo qualquer coisa que é já de ter chegado. Talvez uma certa forma de olhar, resultante daquela luz que se acende por dentro quando nos pomos a caminho dispostos a tudo o que aparecer.
E nem haverá problema se a morte te encontrar assim, ainda no gesto de subir: já tens em ti o teu lago, na imagem dele que te fez partir.
Não deves recusar a dor, porque ela te constrói, te marca os limites e te faz crescer por dentro dos teus muros.
Sem ela, não passarias de um projeto do homem que hás de ser. Ela edifica-te os músculos, a cabeça e o coração, e não existe outra maneira de chegares a ser aquilo que deves vir a ser.
Se não sofresses não haveria ninguém dentro de ti.
No cumprimento sério dos teus deveres, encontrarás a dor na forma de esforço e de cansaço.
Mas pode muito bem ser que, tarde ou cedo, ela te procure sem disfarces e te faça chorar ou gemer. É frequente que ela se apresente assim, numa nudez que parece cruel e faz lembrar facas ou agulhas.
Nem por isso te deves assustar ou desistir.
Quando te parecer que tudo está perdido, ri-te, se puderes. É que te estão a oferecer um degrau que te deixará incomparavelmente mais acima no caminho. Deves ver nisso o sinal de que – por qualquer razão – é tempo de andares depressa.
Sobretudo, não te queixes. Há assim metamorfoses que parecem aniquilar, mas não passam de formas de fazer surgir a borboleta.
Não te queixes, porque receberás umas asas e cores novas.

O teu lago – de onde de tão perto se pode olhar o céu – tem um preço que tu saberás dar e não é tão grande assim.

sábado, 1 de novembro de 2014

Virgo


Não quero usar-te. Não tenciono ganhar experiência à tua custa. Não quero que sejas um episódio na minha vida, nem desejo estar de passagem pela tua.
Não penso que a vida seja uma brincadeira, embora se possa brincar com quase tudo. Sou ainda novo e tenho muito que descobrir, mas aprendi a amar aquilo que é sólido e permanece. Sou demasiado ambicioso para querer menos que o máximo, e não trocarei o meu sonho por ilusões, ainda que sejam doces e agradáveis.
Estabeleci para a minha vida ter filhos e fazer da educação deles, da tarefa de fazer deles homens, o grande sentido do tempo que me for dado para estar aqui. Outros terão objetivos diferentes, mas foi com isto que sonhei. Quero edificar uma casa sólida que dure séculos. Nela crescerão os meus filhos e os filhos dos meus filhos… até vir a ser, com o tempo, uma bela cidade. No meu sonho, vi a miudagem correndo à beira de um ribeiro, com os olhos limpos, traquinas e alegres.
Por isso, embora sinta isto que sabes que sinto, embora sintas aquilo que sei que sentes, talvez se torne necessário dizer-te, e dizer-me, que pode não chegar o dia em que troquemos palavras de amor.
Mas esta carta pode também ser o alicerce do belo edifício que construiremos juntos e há de permanecer para sempre.
Tens ainda tempo para vires a ser como te sonhei; tenho ainda tempo para me tornar merecedor de te ter como te sonhei.
Torna-te toda mistério e luz.
Luz porque quero ver-te inteira – sem névoas nem disfarces nem complicações – quando te olhar nos olhos; mistério porque quero que cresças por dentro, em silêncio, e te enchas, em segredo, daquelas riquezas que só se devem manifestar quando nos entregamos a alguém para sempre.
Enfeita-te interiormente, sobretudo. Como a flor para a qual não chegou ainda a Primavera e vai preparando recatadamente as suas cores e os seus aromas.
Demora-te no teu tempo e não permitas a pressa. E ajuda-me a não ter pressa.
Veste vestidos compridos, se puderes, e não saias curtas ou calças apertadas. Sempre me pareceu que certas formas de vestir não são senão a manifestação de um vazio interior muito grande. Algumas que vejo passar na rua fazem-me lembrar montras de talhos…
Aquela que vai para a rua mostrar as formas do seu corpo atrai os homens que procuram na mulher um corpo, e assim se torna semelhante à prostituta. E assim se desgraça e os desgraça. Assim passa de mulher a corpo de mulher, tornando-se infinitamente menor do que devia ser.
Mas eu quero que sejas do tamanho de seres mulher. Quero que sejas forte.
Porque, embora possa não parecer, sei que sou frágil. E aquela que há de ser a mãe dos meus filhos fará a meu lado toda a aventura da vida, e será a minha força e os muros da minha cidade e o ombro para o meu cansaço.
“Virgo” era a palavra que, no meu sonho, encontrei inscrita numa pedra de umas ruínas que bem podiam ser as ruínas do mundo. Por ela me apaixonei.

Vim mais tarde a saber que significa “virgem” e já não era muito usada. Disseram-me que tem, em latim, a mesma raiz da palavra “força”.

É


É!
A gente quer valer o nosso amor
A gente quer valer nosso suor
A gente quer valer o nosso humor
A gente quer do bom e do melhor...
A gente quer carinho e atenção
A gente quer calor no coração
A gente quer suar, mas de prazer
A gente quer é ter muita saúde
A gente quer viver a liberdade
A gente quer viver felicidade...
É!
A gente não tem cara de panaca
A gente não tem jeito de babaca
A gente não está
Com a bunda exposta na janela
Prá passar a mão nela...

É!
A gente quer viver pleno direito
A gente quer viver todo respeito
A gente quer viver uma nação
A gente quer é ser um cidadão
A gente quer viver uma nação...

Letra Gonzaguinha
Imagem Portinari

Sentado à Beira do Caminho


Eu não posso mais ficar aqui
A esperar!
Que um dia de repente
Você volte para mim...
Vejo caminhões
E carros apressados
A passar por mim
Estou sentado à beira
De um caminho
Que não tem mais fim...
Meu olhar se perde na poeira
Dessa estrada triste
Onde a tristeza
E a saudade de você
Ainda existe...
Esse sol que queima
No meu rosto
Um resto de esperança
De ao menos ver de perto
O seu olhar
Que eu trago na lembrança...
Preciso acabar logo com isso
Preciso lembrar que eu existo
Que eu existo, que eu existo...
Vem a chuva, molha o meu rosto
E então eu choro tanto
Minhas lágrimas
E os pingos dessa chuva
Se confundem com o meu pranto...
Olho prá mim mesmo e procuro
E não encontro nada
Sou um pobre resto de esperança
À beira de uma estrada...
Preciso acabar logo com isso
Preciso lembrar que eu existo
Que eu existo, que eu existo...
Carros, caminhões, poeira
Estrada, tudo, tudo, tudo
Se confunde em minha mente
Minha sombra me acompanha
E vê que eu
Estou morrendo lentamente...
Só você não vê que eu
Não posso mais
Ficar aqui sozinho
Esperando a vida inteira
Por você
Sentado à beira do caminho...

Preciso acabar logo com isso
Preciso lembrar que eu existo
Que eu existo, que eu existo...


Inspirada em uma canção sucesso no ano de 1968, Honey (I miss you) de Bobby Russell, interpretada por Bobby Goldsboro, foi composta, em trabalho conjunto, letra e música, pela dupla de compositores Roberto Carlos e Erasmo Carlos.
É uma canção romântica descrevendo o desespero e a desesperança de um apaixonado que se encontra na "beira de uma estrada" aguardando por sua amada. Nesta situação, a letra descreve o que se passa na estrada (movimento, chuva, sol, trânsito) enquanto o personagem espera por sua grande paixão.
O refrão "Preciso acabar logo com isto, preciso lembrar que eu existo", segundo uma entrevista de Erasmo Carlos, foi criação de Roberto Carlos, após uma madrugada inteira atrás das "palavras certas", e que surgiu após um breve cochilo.
O arranjo da primeira versão da música é valorizada pelo teclado Hammond B-3 de Lafayette, bastante original e criativo e também pela guitarra base de Aristeu Alves dos Reis.
Na época, a gravação de Erasmo Carlos foi um estrondoso sucesso, tornando a colocar o cantor nas paradas de sucessos nacionais. As rádios não paravam de tocar a canção em todo o Brasil.
A novela Beto Rockfeller chegou a executá-la na íntegra em um capítulo, enquanto o personagem principal caminhava pelas ruas de São Paulo.